A luz da manhã que entrava pela alta janela do meu quarto de hóspedes na Mansão Stein me encontrou já desperto. Fiquei sentado na cama, observando os raios de sol dançarem sobre o tapete caro. A noite anterior foi diferente. A conversa com Belle, a vulnerabilidade inesperada dela e a minha própria confissão hesitante haviam criado uma fissura na armadura que eu tentava manter. Eu ainda sentia o peso do que fiz na estrada – a imagem daquele Espadachim Arcano queimando por dentro era uma cicatriz recente em minha mente –, mas o sentimento avassalador de isolamento havia diminuído um pouco.
Lembrei-me das palavras dela: "Você não vai se tornar algo ruim, Elian. Você fez aquilo para proteger quem ama." E depois: "Eu tenho orgulho de você." Orgulho. Ninguém jamais dissera ter orgulho de mim por algo que não fosse meu potencial arcano ou minha linhagem. Belle não me via como um monstro em potencial, mas como alguém que fora forçado a um ato extremo por amor e dever. E, de alguma forma, a aceitação dela, vinda de alguém que eu respeitava como rival e agora, hesitante e timidamente, considerava amiga, era mais reconfortante do que eu imaginava ser possível.
O abraço de Vivian, a pureza de seu amor infantil, também foi um bálsamo. Protegê-la, proteger minha mãe... esse era meu propósito nesta nova vida, a chance de corrigir os fracassos da anterior. Aquele ato brutal na estrada, embora perturbador, foi um passo necessário nessa direção. O medo de me tornar como Rodrick ainda existia, uma sombra persistente no fundo da minha mente, mas agora havia também a esperança, alimentada pelas palavras de Belle, de que eu poderia trilhar um caminho diferente.
Um leve bater na porta me tirou de minhas reflexões. Era a voz da minha mãe.
— Elian? Já está acordado, querido? O café da manhã está quase pronto.
— Sim, Mãe. Já vou descer — respondi, levantando-me e tentando ajeitar minha túnica de dormir.
Quando desci para a sala de jantar formal da Mansão Stein, encontrei meus pais já sentados à mesa com o Conde Albert e a Condessa Elisabeth. Belle estava ao lado da mãe, e Vivian já estava em uma cadeira alta, tagarelando com a Condessa sobre um cachorrinho que viu no dia anterior. O ambiente era de uma calma elegante, muito diferente das refeições mais simples em nossa casa.
— Bom dia, Elian — saudou meu pai, observando-me com atenção enquanto eu me sentava. Ele pareceu notar algo, pois comentou: — Dormiu bem?
— Sim, Pai — respondi, um pouco surpreso com a pergunta direta. Meus pais geralmente eram mais reservados.
Minha mãe também me observava, um sorriso suave nos lábios. — Você parece melhor hoje, querido.
Senti meu rosto esquentar um pouco. — Estou bem, Mãe.
O Conde Albert interveio, talvez para aliviar meu constrangimento. — Estávamos justamente comentando sobre a apresentação quinquenal. Lucius e Maria estavam me contando como foi a deles, anos atrás.
Ergui o olhar, interessado. Eu sabia pouco sobre o evento em si, apenas que era importante e que eu e Belle teríamos que participar.
— Como foi, Pai? — perguntei.
Meu Pai sorriu levemente, um brilho nostálgico nos olhos. — Bem, na minha época, foi um pouco menos... grandioso do que imagino que seja agora. Mas a essência é a mesma. Fomos levados ao Grande Salão do Palácio Real, diante do Rei anterior, pai de Theron, e de vários membros da corte e do Conselho Arcano. Tivemos que demonstrar nossa afinidade e o nível de nossa Runa.
— Eu tive que criar uma pequena chama controlada — acrescentou minha mãe. — Minha Runa da Centelha estava recém-purificada na época. Foi assustador, com todos aqueles olhos em você, mas também emocionante. É o primeiro reconhecimento oficial de seu potencial.
— E o meu foi um pouco diferente — disse o Conde Albert, com um toque de orgulho discreto em sua voz. — Como Espadachim Arcano, tive que demonstrar não apenas a Runa, mas também uma postura básica de combate e a canalização inicial de energia na lâmina. Nada muito complexo, claro, éramos jovens. Mas o objetivo é o mesmo: mostrar à Coroa que você tem o dom e o potencial para servir ao reino, seja através das artes arcanas puras ou da lâmina arcana.
— Então teremos que usar feitiços na frente do Rei? — perguntei, sentindo um frio na barriga só de imaginar.
— Exatamente — confirmou meu pai. — Você terá que demonstrar controle sobre sua afinidade elemental, provavelmente com um feitiço simples que mostre sua capacidade de manipulação. E eles avaliarão o brilho e a estabilidade de sua Runa da Centelha para determinar seu nível de acumulação e potencial de purificação.
— E eu terei que fazer algo com a espada? — perguntou Belle, entrando na conversa, seus olhos âmbar fixos no pai.
— Sim, querida — respondeu o Conde Albert. — Uma demonstração de postura, talvez um corte simples canalizando energia, como eu fiz. O suficiente para mostrar sua aptidão como Espadachim Arcana.
Troquei um olhar rápido com Belle. A ideia de me apresentar diante do Rei e de toda a corte era intimidante. Pensei nos feitiços que vinha praticando – o “Arcus Ignis”, o “Globus Ignis”... qual deles seria adequado? E minha Runa? Estava acumulada, mas ainda não purificada. Seria suficiente?
A conversa continuou com mais detalhes sobre a etiqueta esperada, os trajes apropriados e a importância do evento para nosso futuro e o de nossas famílias. Para mim, aquilo solidificava a realidade: minha vida estava irrevogavelmente ligada ao caminho arcano, um caminho que me levaria a desafios muito maiores do que bandidos na estrada.
Após o café da manhã e a conversa esclarecedora sobre a apresentação, meu pai me levou para o pátio de treinamento nos fundos da Mansão Stein. Era um espaço amplo e bem equipado, muito superior ao pequeno pátio que tínhamos em casa, com chão de terra batida, alvos para arco e flecha, e bonecos de treino. Minha mãe nos acompanhou, levando Vivian pela mão, e sentaram-se em um banco de pedra à sombra de uma grande árvore para observar.
Lucius me entregou uma espada de treino de madeira, semelhante à que eu usava em casa, mas de melhor qualidade. — Vamos repassar as posturas básicas e os primeiros movimentos que ensinei. Lembre-se, Elian, a espada exige disciplina e precisão tanto quanto as artes arcanas, mas de uma forma diferente. Aqui, seu corpo é a ferramenta principal.
Assenti, empunhando a espada com as duas mãos. Eu gostava do peso sólido da madeira, da sensação diferente de canalizar minha concentração para o movimento físico em vez da energia arcana. Nos últimos três anos, sob a tutela de meu pai nos fins de semana, eu havia progredido. Minhas posturas eram mais firmes, meus movimentos mais fluidos do que no início, mas eu ainda sentia a frustração de não conseguir replicar a velocidade e a força explosiva que via em meu pai ou mesmo em Belle durante nossos treinos conjuntos. Era como se meu corpo não respondesse da mesma forma que o deles.
— Postura inicial! — comandou meu pai.
Ajustei meus pés, flexionei levemente os joelhos e ergui a espada à frente do corpo, a ponta ligeiramente elevada, o olhar focado nele. Começamos com exercícios de footwork, avançando, recuando, movendo-nos lateralmente, sempre mantendo o equilíbrio e a postura defensiva. Depois, passamos para os cortes básicos – vertical, horizontal, diagonal – contra o ar, focando na forma e na rotação do quadril para gerar força.
Meu pai me corrigia pacientemente. — Gire mais o tronco nesse corte, Elian. A força vem do corpo todo, não só dos braços. Mantenha a guarda alta ao recuar.
Eu tentava absorver as instruções, repetindo os movimentos. Era um trabalho árduo e repetitivo, muito diferente da sensação quase instantânea de poder ao moldar o fogo com minha Vontade. Eu sabia que era necessário, que um Arcanista que não pudesse se defender minimamente de perto era vulnerável, mas a lentidão do meu progresso físico era um contraste gritante com minha aptidão arcana.
Vivian, no banco, logo perdeu o interesse nos meus movimentos repetitivos e começou a brincar com uma boneca que mamãe trouxe. Minha mãe nos observava com um olhar atento, notando minha concentração e a dedicação de meu pai. Eu podia sentir sua preocupação com a pressão sobre mim, mas também seu orgulho pela minha determinação em ambos os caminhos.
Foi então que duas figuras familiares surgiram na entrada do pátio de treinamento: Belle e sua mãe, a Condessa Elisabeth. Ambas traziam sorrisos radiantes no rosto, uma alegria contagiante que parecia iluminar o ambiente.
— Interrompemos? — perguntou a Condessa Elisabeth, a voz melodiosa, enquanto se aproximavam do banco onde minha mãe estava.
— De forma alguma, Elisabeth! — respondeu minha mãe, levantando-se para cumprimentá-la. — Sentem-se conosco. Lucius está apenas repassando alguns fundamentos com Elian.
Belle cumprimentou minha mãe e depois voltou seu olhar para o pátio. Eu parei o exercício e olhei na direção delas. Minha expressão devia estar neutra, mas talvez um pouco menos tensa do que no dia anterior. Ela sorriu para mim, um sorriso genuíno e aberto, diferente dos olhares competitivos que trocávamos nos treinos. Fiquei surpreso por um instante, mas retribuí com um leve aceno de cabeça antes de voltar minha atenção para meu pai, que também cumprimentava as recém-chegadas.
A felicidade evidente no rosto de Belle e de sua mãe era palpável, mas nenhuma delas ofereceu uma explicação imediata, deixando um ar de curiosidade pairando sobre o pátio de treinamento.
O mistério por trás da alegria contagiante da Condessa Elisabeth e de Belle foi revelado durante o jantar naquela noite. A refeição foi servida na sala de jantar menor, um ambiente ainda assim opulento para os meus padrões, mas mais íntimo do que o salão principal. A conversa fluía mais facilmente entre os adultos, compartilhando histórias e discutindo assuntos triviais da nobreza e da capital, enquanto nós, as crianças, comíamos em relativo silêncio.
Foi o Conde Albert quem, após um brinde à saúde das duas famílias reunidas, pigarreou e sorriu para a esposa, que retribuiu o olhar com carinho.
— Temos uma notícia feliz para compartilhar com nossos estimados hóspedes — anunciou o Conde, o tom formal ligeiramente suavizado pela alegria. — Elisabeth e eu fomos abençoados. Estamos esperando outro filho.
A notícia foi recebida com exclamações de surpresa e felicidade. Meus pais foram os primeiros a oferecer sinceras congratulações, brindando novamente à saúde da Condessa e ao futuro herdeiro Von Stein. Vivian perguntou inocentemente se o bebê viria com um cachorrinho, arrancando risadas dos adultos. Belle sorria abertamente, a felicidade pela notícia estampada em seu rosto.
Ofereci um parabéns educado, genuinamente feliz pela família que nos acolhera, embora a ideia de um novo bebê parecesse algo distante das minhas próprias preocupações. Notei o brilho nos olhos de Belle e entendi a razão de sua alegria mais cedo naquele dia.
Após a comoção inicial diminuir e a conversa voltar a temas mais gerais, Belle se virou para mim. Eu estava sentado ao seu lado.
— Elian — começou ela, um pouco hesitante, mas com um brilho animado nos olhos. — Eu estava pensando... já que teremos alguns dias antes da apresentação, talvez pudéssemos... dar uma volta pela área comercial amanhã? Ver as lojas, talvez? Mamãe disse que há uma loja de artefatos arcanos muito interessante por lá.
A sugestão me pegou de surpresa. Um passeio? Voluntariamente? Franzi a testa levemente. A ideia de caminhar por ruas lotadas, cercado por estranhos e pelo barulho da cidade, não era exatamente atraente. Eu preferia a quietude do treino ou a solidão dos meus pensamentos, mesmo que estes fossem sombrios.
— Eu não sei, Belle... — murmurei. — Tenho treino com meu pai pela manhã e...
— Ora, Elian — interrompeu minha mãe gentilmente, percebendo minha relutância. — Um pouco de descanso e distração fará bem a você. Você treina arduamente. É importante ver um pouco do mundo também, conhecer a capital.
Meu pai concordou com ela. — Sua mãe tem razão. A vida não é só treinamento, filho. Conhecer a cidade e interagir com outras pessoas faz parte do aprendizado de um nobre. E Belle está sendo gentil em convidá-lo.
— De fato — acrescentou o Conde Albert, com um sorriso divertido para a filha e depois para mim. — Um passeio supervisionado, é claro. Mas uma excelente ideia para os jovens conhecerem melhor Velunor antes da agitação da apresentação.
Senti-me um pouco pressionado, mas também reconheci a lógica nas palavras deles e a gentileza no convite de Belle – um claro esforço para me incluir após nossa conversa do dia anterior. Suspirei internamente.
— Tudo bem — concordei, ainda um pouco relutante, mas oferecendo um pequeno sorriso a Belle. — Podemos ir amanhã à tarde, depois do meu treino.
O sorriso de Belle se alargou. — Ótimo! Será divertido!
No dia seguinte, após o almoço, nos preparamos para o passeio. Antes de sairmos, o Conde Albert chamou um de seus guardas de confiança, um homem alto e de ombros largos que eu reconheci como Kael.
— Kael, acompanhe Lady Isabelle e o jovem Lorde Freimann em seu passeio pelo distrito comercial. Mantenha-se discreto, mas atento — instruiu o Conde.
Meu pai, igualmente cauteloso após o incidente na estrada, fez o mesmo, chamando seu capitão. — Borin, acompanhe meu filho e Lady Isabelle. Trabalhe junto com o guarda dos Stein para garantir a segurança deles.
O Capitão Borin, com sua postura firme e olhar vigilante, assentiu. — Sim, meu Lorde.
Com a escolta garantida – um guarda para cada um de nós –, pudemos finalmente sair. Vesti uma túnica azul-escura, a cor principal de nossa família, com discretos bordados dourados na gola e nos punhos, sobre calças escuras e botas resistentes. Prendi meu cabelo loiro para trás, longe do rosto. Belle usava um vestido verde-floresta prático, mas elegante, que realçava seus cabelos ruivos, presos em uma trança elaborada. Um broche prateado com a aguia dos Stein prendia uma leve capa em seus ombros.
Ao sairmos da relativa tranquilidade da Mansão Stein e mergulharmos novamente nas ruas movimentadas do distrito comercial, senti uma ponta de ansiedade. O barulho, a multidão... não era o meu ambiente preferido. Mas a presença de Belle ao meu lado, conversando animadamente sobre as lojas que queria ver, ajudou a dissipar um pouco o nervosismo. Os dois guardas, Kael e Borin, nos seguiam a uma distância respeitosa, misturando-se à multidão, mas eu podia sentir seus olhares atentos varrendo constantemente os arredores.
O distrito comercial era um ataque aos sentidos. Lojas exibiam tecidos de seda brilhantes, especiarias exóticas empilhadas em sacos abertos, jóias que cintilavam sob a luz do sol, e armas polidas que pareciam obras de arte. Havia o cheiro de pão fresco vindo de uma padaria, o som de um ferreiro martelando em uma oficina próxima, e o burburinho constante de conversas e barganhas. Era muito diferente de casa.
Acostumados à vida mais reclusa, ficamos genuinamente encantados. Belle apontava para vitrines com exclamações de admiração, enquanto eu, embora mais contido, observava tudo com uma curiosidade aguçada, absorvendo os detalhes daquele novo mundo.
— Olha, Elian! Aquela loja tem cristais de mana! — exclamou Belle, puxando-me levemente pela manga em direção a uma vitrine que exibia pedras brilhantes de diferentes cores e tamanhos. — Mamãe disse que alguns podem ser usados para focar energia arcana.
Passamos um tempo admirando os cristais, as runas pré-gravadas em pequenos discos de metal e outros artefatos arcanos de menor poder. Senti uma pontada de gratidão por Belle ter me convidado. A conversa do dia anterior, a gentileza dela, e agora este passeio... eu queria agradecer de alguma forma, mostrar que valorizava a amizade que ela me oferecera.
Enquanto Belle se distraía com um conjunto de adagas de treino com runas gravadas, avistei uma pequena joalheria do outro lado da rua. Uma ideia surgiu em minha mente. Discretamente, me afastei.
— Vou ver aquela loja ali rapidinho. Já volto — disse, antes que Belle pudesse protestar.
Entrei na joalheria, me sentindo um pouco deslocado entre os expositores de veludo e o brilho do ouro e da prata. Expliquei ao joalheiro, um homem idoso com óculos na ponta do nariz, o que procurava: algo simples, mas significativo, talvez com uma pequena pedra.
Ele me mostrou algumas opções, e um anel em particular chamou minha atenção. Era um anel de ouro simples, delicado, com uma minúscula pedra azul-clara cravada no topo. — Esta é uma pequena pedra de mana de água, jovem senhor — explicou o joalheiro. — Não tem poder suficiente para grandes feitiços, mas dizem que acalma a mente e ajuda na concentração. É popular entre os estudantes arcanos.
Era perfeito. Simples, relacionado às artes arcanas, e com um significado útil. Usei algumas das moedas que meu pai me deu para pequenas despesas e comprei o anel, pedindo ao joalheiro que o colocasse em uma pequena caixa.
Voltei para onde Belle estava, encontrando-a ainda admirando as adagas. Pigarreei, sentindo meu rosto esquentar um pouco.
— Belle?
Ela se virou. — Ah, aí está você! O que foi ver?
— Eu... eu queria te agradecer — comecei, um pouco sem jeito, estendendo a pequena caixa. — Por ontem. Pela conversa. E por me convidar hoje. Eu... comprei isso para você.
Belle olhou para a caixa, depois para mim, a surpresa estampada em seu rosto. Ela pegou a caixa hesitante e a abriu. Ao ver o delicado anel de ouro com a pequena pedra azul brilhante, seus olhos se arregalaram e um rubor intenso subiu por seu pescoço até as bochechas, contrastando vividamente com seus cabelos ruivos. Nunca a tinha visto corar antes.
— Elian... é... é lindo! — gaguejou ela, levantando o olhar para mim, os olhos âmbar brilhando de felicidade e uma timidez que eu nunca vi nela antes. — Mas... você não precisava...
— Eu quis — disse, sentindo-me ainda mais sem jeito ao ver a reação dela. Eu não esperava que ela fosse ficar tão... assim. — É só um agradecimento. Pela amizade.
A palavra "amizade" pareceu intensificar o rubor de Belle, mas também trouxe um sorriso radiante a seus lábios. Ela tirou o anel da caixa com dedos trêmulos e o deslizou em seu dedo anelar. Serviu perfeitamente.
— Obrigada, Elian — disse ela, a voz um pouco embargada. — De verdade. Ninguém nunca... obrigada.
Desviei o olhar, sentindo-me estranhamente tímido também. Eu só queria agradecer, mas a intensidade da reação dela, o rubor, o brilho nos olhos... fez com que eu percebesse que talvez um anel, mesmo simples, tivesse um significado maior do que eu pretendera na minha inocência. Aquele gesto, nascido da gratidão, parecia ter solidificado algo novo e desconhecido entre nós.
O momento de constrangimento eterno entre nós foi abruptamente interrompido por vozes estridentes que se aproximavam.
— Ora, ora, se não é Isabelle Von Stein! O que faz em uma loja tão... comum?
Três crianças, claramente nobres pelas roupas finas e pela aura de arrogancia que emanava, pararam diante de nós. Belle e eu nos viramos, a atmosfera leve do passeio se dissipando instantaneamente.
O líder do trio, um garoto de uns sete anos com o rosto redondo e bochechas rosadas que não disfarçavam um leve excesso de peso, usava uma túnica de veludo púrpura ricamente bordada com fios de ouro. Seus cabelos castanhos estavam meticulosamente penteados, e ele nos olhava de cima, apesar de ser mais baixo que Belle. Reconheci a atitude, se não o rosto: Hugo Von Hoffmann, filho do influente Duque Leonard Von Hoffmann.
Ao lado dele estava Oliver Von Meyer, um garoto de oito anos, magro e um pouco mais baixo que eu. Seus trajes eram menos opulentos que os de Hugo, mas ainda assim de boa qualidade, em tons de cinza e prata. Ele tinha um rosto estreito, olhos pequenos e astutos, e um sorriso de escárnio já se formando nos lábios finos. A família Meyer, eu sabia, era vassala dos Hoffmann.
A terceira criança era uma menina, Amália Von Barth, também com cerca de oito anos e quase da altura de Belle. Era bonita, com longos cabelos loiros presos em fitas de seda e olhos azuis claros. Vestia um vestido azul-celeste elegante, mas sua postura era menos assertiva que a dos garotos. Notei uma sombra de desconforto em seu semblante enquanto observava a interação, como se estivesse ali mais por obrigação do que por vontade própria. A família dela também era vassala dos Hoffmann.
Belle endireitou os ombros, a timidez desaparecendo e sendo substituída pela frieza calculada de uma Von Stein.
— Lorde Hoffmann, Lorde Meyer, Lady Barth — cumprimentou Belle, a voz neutra. — Estávamos apenas apreciando as novidades da capital.
Os olhos de Hugo passaram rapidamente por Belle e pousaram em mim com desdém explícito. Ele não me reconheceu.
— E quem é este? — perguntou Hugo, o tom carregado de desprezo. — Algum servo novo dos Stein?
Antes que Belle pudesse responder, Oliver Von Meyer soltou uma risadinha debochada. — Não seja tolo, Hugo. Veja a túnica. É um Freimann, não é? Um desses... Arcanos. Da nobreza menor.
A palavra "Arcano" foi dita como se fosse um insulto. Senti meu sangue ferver. Aquele preconceito que eu sentia pairar em certos círculos agora era jogado na minha cara com arrogância aberta.
— Este é Elian Freimann, filho do Baronete Lucius Freimann — apresentou Belle, a voz cortante, deixando claro que eu estava sob sua companhia e, por extensão, sob a proteção implícita dos Von Stein naquele momento.
Hugo soltou uma bufada desdenhosa. — Um Baronete Arcano? E anda com você, Isabelle? Achei que os Von Stein tivessem padrões mais elevados. Misturar-se com essa raça imunda...
— Cuidado com suas palavras, Hoffmann! — Minha voz saiu baixa e carregada de uma fúria fria que surpreendeu até a mim mesmo. A lembrança da conversa com Belle, o orgulho dela, a promessa silenciosa de não me deixar abater... tudo isso foi momentaneamente esquecido diante daquele insulto direto, não apenas a mim, mas a toda a minha linhagem, a minha mãe, meu pai, a Mestra Margareth.
Dei um passo à frente, os punhos cerrados, a energia começando a formigar em minha Runa da Centelha quase por instinto. Aquele olhar frio e perigoso que Belle viu em meu quarto deve ter retornado com força total.
— Ora, o cachorrinho arcano sabe rosnar? — zombou Oliver, dando um passo ao lado de Hugo, claramente buscando a aprovação do filho do Duque.
— Elian! — A voz firme de Belle me deteve. Ela colocou a mão em meu braço, um toque leve, mas carregado de advertência. — Não vale a pena.
Hesitei, a raiva lutando contra a razão e a lembrança do autocontrole que eu precisava manter. Belle estava certa. Criar uma cena ali, atacar o filho de um Duque e seus seguidores, seria desastroso, não importava o quão justificada minha raiva fosse.
Mas Hugo, sentindo-se desafiado pela minha postura e pela intervenção de Belle, decidiu levar a provocação adiante. — Não vale a pena? Ou ele simplesmente não tem coragem? Aposto que sua “arte arcana" não passa de truques baratos. Talvez devêssemos testar isso.
Amália Von Barth arregalou os olhos, parecendo genuinamente alarmada. — Hugo, por favor...
— Cale-se, Amália! — retrucou Oliver. — Hugo está certo. Vamos ver o que o pequeno Arcano sabe fazer.
Oliver, talvez para impressionar Hugo ou por pura maldade, começou a murmurar palavras e fazer gestos discretos com as mãos. Senti o chão de paralelepípedos aos meus pés tremer levemente, e pequenas pedras e poeira começaram a se aglutinar, formando uma esfera irregular de terra e detritos que crescia rapidamente em sua mão – uma versão rudimentar de um projétil de terra.
A tensão tornou-se quase insuportável. Vi nossos guardas, Kael e Borin, que observavam atentamente a uma curta distância, começarem a se mover, prontos para intervir, mas cientes da delicadeza de interferir em uma disputa entre jovens nobres.
No exato instante em que a bola de terra na mão de Oliver começou a zunir com energia instável, pronta para ser lançada, e eu, agindo por puro instinto de proteção, comecei a puxar a energia ambiente para formar um Murum Ignis defensivo à minha frente, uma presença avassaladora desceu sobre nós.
Uma figura alta e imponente, envolta em um manto cinza-escuro que parecia absorver a luz ao redor, surgiu como que do nada entre nós. Com um gesto quase casual da mão direita, a esfera de terra na mão de Oliver se desfez em poeira inofensiva, caindo no chão. Com um olhar penetrante e um leve franzir de testa na minha direção, a energia ígnea que eu começava a reunir se dissipou instantaneamente, deixando apenas um calor residual no ar e um formigamento na minha Runa.
Era a Mestra Margareth.
Seus olhos, que eram verde-claro, agora de um azul profundo e gélido, varreram a cena, fixando-se primeiro em mim.
— Elian Freimann — sua voz era calma, mas carregada de uma autoridade que me fez encolher os ombros involuntariamente. — Controle. Lembra-se do que falamos sobre controle? E sobre a adequação de usar suas habilidades? Uma provocação infantil justifica erguer um Muro de Fogo em plena rua comercial?
Abaixei a cabeça, sentindo meu rosto queimar, não de raiva, mas de vergonha. — Não, Mestra Margareth. Me desculpe.
— Desculpas não reparam a imprudência — disse ela, o tom ainda calmo, mas severo. — Discutiremos isso mais tarde.
Então, ela se virou, e a calma desapareceu, substituída por uma aura gélida que fez até mesmo Hugo Von Hoffmann dar um passo para trás. Seus olhos fixaram-se em Oliver, que tremia visivelmente, e depois em Hugo.
— Lorde Meyer, suponho? E Lorde Hoffmann. Que demonstração patética de arrogância e falta de controle. Usar artes arcanas para intimidar alguém em público? Ameaçar um membro de outra casa nobre, mesmo que Arcana? Seus pais ficariam... desapontados... com tamanha falta de decoro e bom senso.
Hugo tentou inflar o peito, buscando a arrogância habitual, mas ela murchou sob o olhar implacável de Mestra Margareth. — E quem é você para nos dizer o que...
Antes que Hugo pudesse terminar a frase insolente, o Capitão Borin, que se aproximou rapidamente junto com Kael, fez uma reverência profunda e respeitosa.
— Arquimaga Margareth! — A identificação de Borin ecoou no silêncio tenso que se formou. O título, mesmo que não fosse o mais recente ou formal dela, ainda carregava um peso imenso, uma lenda viva no mundo arcano, mesmo que negativamente.
Os rostos de Hugo e Oliver empalideceram instantaneamente. Arquimaga Margareth Lindemberg! A antiga Arquiduquesa do Norte, uma figura de poder e mistério quase míticos. A arrogância deles evaporou, substituída por um medo palpável.
— A... A... Arquimaga! — gaguejou Hugo, os olhos arregalados.
Oliver parecia prestes a desmaiar. Eles haviam não apenas me provocado sob a proteção dos Von Stein, mas também tentado usar artes arcanas na frente de uma das mais poderosas e temidas Arcanistas do reino, que por acaso era minha mestra.
— Vão — ordenou Mestra Margareth, a voz baixa e perigosa. — Antes que eu decida dar uma lição prática sobre respeito e controle arcano que seus tutores falharam em ensinar.
Sem precisar de mais incentivo, Hugo e Oliver praticamente tropeçaram em seus próprios pés para fugir, puxando Amália com eles. Antes de ser arrastada, Amália lançou um olhar rápido e apologético na minha direção e na de Belle, um pedido de desculpas silencioso que apenas nós notamos na confusão da retirada apressada.
Mestra Margareth observou-os desaparecer na multidão com uma expressão de desdém e então se virou para Belle e para mim, sua expressão suavizando ligeiramente, embora ainda séria.
— Vocês dois. Comigo. Agora. — disse ela, virando-se e começando a caminhar, esperando que a seguíssemos sem questionar.