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Chapter 12 - AS CABELEIRAS VERMELHAS

As oito e meia da noite em ponto, Alberto chegava ao palacete onde morava Rachel Saturnino. A moça esperava-o envolvida num vestido de jérsei marrom, que lhe moldava, perfeitamente, o corpo bem feito. Seu pai se achava numa estação de água, e uma velha tia ficara ajudando Rachel a tomar conta da casa. — Por que você fez aquilo com Verônica? disse Alberto, logo de início. — Aquilo o que, meu bem? perguntou ela fingindo a maior inocência. — Não se faça de ingênua, Rachel! Você sabe muito bem o que quero dizer. — Ah! Aquela... anãzinha é ciumenta, é? Que ridícula! Apenas quis confirmar a nossa conversa. O telefone estava tão ruim! — Eu sei disso... tornou o estudante, ironicamente. A maldade da moça afastava-o dela ainda mais. Não for a para discutir, entretanto, que ele estava lá. — Acabemos com isso, Rachel. Preciso conversar muito seriamente com você. — Pode pensar que estou enciumada, que sou intrigante, continuou ela. Saiba, entretanto, que você não me interessa mais absolutamente. Estou quase noiva de um romeno amigo de meu pai, um "partido" e tanto! Sua fortuna particular chega a bilhões e bilhões de cruzeiros! — Que faça bom proveito, disse Alberto. Vamos agora ao assunto importante. E contou-lhe, minuciosamente, tudo o que estava acontecendo. A moça ouvia-o em silêncio, como que magnetizada, apenas um tanto pálida. — Como você vê, Rachel, sua vida corre perigo, e eu quis logo avisá-la. — Pelo amor de Deus, diga o que devo fazer... falou ela, com voz ligeiramente trêmula... — Saia imediatamente da cidade, ou então... pinte os cabelos de preto. — Pintar os cabelos? — Bem, talvez seja tarde para tomar essa providência. "Ele" já deve ter marcado você... Viaje amanhã mesmo, hoje, se puder. Mude-se daqui... — Que coisa horrorosa! Como irão descobrir, quem seja "ele"? — Estaremos prevenidos, e agarraremos o sujeito com a boca na botija, através de um dos ruivos da cidade. — Por que não eu? — Loucura, Rachel. Você não pode se expor a uma coisa dessas. — Não há perigo, insistiu a moça. Uma vez que ele manda antes o "aviso" do besouro, a única coisa que tenho a fazer é telefonar a vocês contando. Aí então chega a Polícia, e segura o criminoso. Tudo muito simples, como você vê. Além disso, há mais gente de cabelos vermelhos na cidade, e pode ser que eu seja uma das últimas da fila... Até chegar a minha vez, espero que o doido já tenha sido agarrado. — Você está prevenida, Rachel. Se não quer seguir meu conselho de fugir daqui, não tenho o direito" de obrigá-la a fazer isso. Fique alerta, entretanto. Se receber um besouro, avise-me ou ao Inspetor Pimentel, imediatamente. — Claro, meu bem. E quando eu chamar, você vem logo, não é? — disse ela rindo. — Rachel, não brinque com uma coisa tão séria, tornou o rapaz. Bem, já vou indo. Adeus. — Tão depressa, assim? Alberto não teve tempo de responder. A tia da moça, uma solteirona magra e grisalha, vestida de negro —, surgiu, na sala, acompanhada de um homem de meia idade, bem trajado, calvo, rotundo e liso como um leitão. — O Sr. Ravic, anunciou ela. Alberto percebeu logo que se tratava do milionário pretendente de Rachel e cumprimentou-o discretamente, retirando-se em seguida. A moça pediu licença ao recém-chegado e acompanhou o estudante até a varanda. — Recomendações à... anãzinha, disse ela com ironia. O rapaz não respondeu e continuou a andar. * * *No dia seguinte, cedo, Alberto e o Inspetor deram início à busca aos ruivos. Felizmente, as férias começavam no dia seguinte, e o estudante teria tempo de sobra para se dedicar às pesquisas. Pensaram contratar alguns ajudantes dentro da própria Polícia, depois desistiram. Quanto menos gente conhecesse o segredo, melhor. Ficavam o dia todo na rua, observando os transeuntes e examinando as filas de cinema e ônibus, a ver se descobriam um rosto sardento e uma cabeleira cor de fogo. Alberto visitou um por um os institutos de beleza. Procurava os cabeleireiros e dizia sempre a mesma coisa:— Sou químico, e estou fazendo experiências sobre a coloração vermelha dos cabelos. Gostaria que o senhor me indicasse algum freguês ou freguesa que fosse ruivo, a fim de que eu lhe fizesse certas perguntas. Mas só me interessam ruivos autênticos, do tipo que possui pele sardenta. Sérgio, o mais famoso "coiffeur" da cidade, indicou-lhe... Rachel Saturnino. — É a única ruiva "natural" que freqüenta meu salão, disse ele. Possuo sete outras freguesas que tingem os cabelos de acaju, mas têm a pele morena, sem manchas, e percebe-se logo que é artifício. Uma delas até casou-se e mudou-se para o interior o mês passado. Na porta de um cinema de bairro, Alberto viu dois meninos cobertos de sardas e de cabelos bem vermelhos. Investigando, descobriu tratar-se de uma família inteira de ruivos, moradores ali mesmo nas vizinhanças. O moço dirigiu-se, imediatamente, para o endereço indicado, procurando o chefe da casa. Tratava-se de homem forte e grisalho, casado com uma senhora ruiva, filha de australianos. O homenzarrão, que era relojoeiro, mal soube da situação, ficou lívido como cadáver. — Deus nos livre e guarde de uma desgraça dessas! exclamou ele, em pânico. Ficou em silêncio alguns segundos diante de Alberto, e depois disse, com voz decidida, mas ligeiramente alterada pela emoção. — Viajo amanhã mesmo com toda minha família para bem longe daqui! Nós íamos passar for a as férias dos meninos, e, diante disso, anteciparemos a data da partida. Fez uma pausa, como se estivesse pensando, e continuou:— Fico um mês for a com minha família e depois volto, deixando os filhos garantidos em casa dos pais de minha mulher. Meus cabelos eram pretos, hoje são brancos. Não corro perigo algum. — Se eu fosse o senhor faria a mesma coisa, disse Alberto. Seria loucura expor sua família a um risco desses. — Aceita um cafezinho? perguntou o relojoeiro, procurando disfarçar sua agitação. Alberto agradeceu, mas recusou, pois ainda tinha muita coisa que fazer naquele dia.Ao chegar à rua, consultou o caderninho de notas para ver o endereço de um outro ruivo — o último da lista. A paróquia de Padre Afonso ficava num bairro bem afastado do centro da cidade. Apesar disso, o sacerdote era muito visitado e procurado, pois já estava se tornando famoso como bom confessor e grande orador-sacro. Sua cabeleira vermelha era tão abundante que fazia lembrar uma juba de leão, artificialmente aplicada num rosto sardento e jovial. Alberto encontrou-o sentado num banco de jardim da casa paroquial, lendo o livro de Johannes Joergensen sobre Francisco de Assis. Padre Afonso possuía um espírito largo e tolerante, um coração generoso e sensível a todas as misérias humanas. O sacerdote mostrou-se surpreso quando o estudante o pôs a par dos acontecimentos. — Acha mesmo, meu amigo, que eu esteja em perigo de vida? disse ele, num tom ligeiramente incrédulo. — Claro, tornou Alberto. De qualquer modo, o criminoso não agirá sem antes mandar-lhe o "aviso" de que falei. — Besouros... besouros... repetiu o padre... É tão inconcebível isso tudo! — Inconcebível, mas verdadeiro... Infelizmente. Só lhe peço que nos avise pelo telefone logo que receber o besouro. Mandaremos, imediatamente, dois "tiras" de absoluta confiança vigiarem com discrição todos os seus passos. Bem, está claro que só faremos isso se o senhor não preferir sair já da cidade. o que está no seu direito fazer. Que acha? — Não, meu amigo. Ficarei aqui mesmo, cuidando de meus fiéis e de meus pobres. Se morrer, é que chegou a minha hora de abandonar o mundo. — Escute uma coisa. Padre Afonso, disse Alberto, olhando-o com curiosidade. O senhor, sendo religioso como é, crê mesmo que Deus pode protegê-lo, afastando-o dos perigos? — Estou absolutamente certo do poder da oração, meu caro. Houve momentos em minha vida — e não poucos — em que senti, nitidamente, a interferência de uma força invisível renovando minhas energias e remediando situações difíceis através de circunstâncias absolutamente imprevisíveis. De uma coisa, porém, estou convencido: ninguém morre antes da hora. Esse "acontecimento" já foi definitivamente determinado, antes mesmo de nosso próprio nascimento. — Não venha me dizer, entretanto, que se, por exemplo, eu morro num acidente, isso aconteceu porque chegou minha "hora"... — Quem sabe? Nossa razão não pode alcançar os motivos pelos quais Deus permitiria uma coisa assim, nem que influência um fato desses teria sobre as outras criaturas. Alberto, que estava profundamente interessado na conversa, interrompeu o Padre:— Não venha me dizer agora que se, por exemplo, um homem caridoso, útil e necessário como o senhor, viesse a ser assassinado, Deus teria permitido isso a fim de beneficiar a alma de fulano ou sicrano... Era o que faltava! concluiu Alberto com uma risada irônica... — Meu amigo, você ainda não ouviu dizer que em relação aos desígnios de Deus, nós só vemos o "avesso" do bordado? Um avesso confuso e feio? — Hum... fez o estudante. Nesse caso, para que rezar, se tudo já foi determinado antecipada e irrevogavelmente? — Não repita uma tolice dessas, Senhor Alberto. Nem todas as desgraças que acontecem "estavam escritas". Muitas delas sucedem, exclusivamente, devido à nossa própria imprudência, assim como muitas outras são evitadas exclusivamente pelas precauções tomadas e pelo poder da oração. — Como distinguir então entre nossa culpa e a do "destino"? — De um modo geral, quando uma. coisa que se receia acontece, apesar das precauções tomadas, e de todo o honesto e real esforço no sentido de evitá-la, pode-se dizer que "tinha" de ser. Só a Deus cabe, entretanto, julgar a medida de nossa culpa, nisso, ou naquilo. — Assim sendo, nos casos de "fatalidade do destino" que atitude deverá ser a nossa? — Bem, meu caro. Deus nos joga diante de tais ou quais circunstâncias, deixando-nos livres para agirmos assim, ou assado... Alberto, fascinado pela inteligência e pela clara lógica do sacerdote, escutava-o em silêncio. — Gostaria de poder explicar esses mistérios todos, disse ele, algum tempo depois. — Veja essa flor, por exemplo — continuou Padre Afonso, mostrandolhe uma belíssima rosa "Crimson Glory", metida num vaso azul. — Ela existe, não existe? — Existe. — Você pode explicá-la? — Não. — Se você não pode explicar uma simples rosa, como pretende decifrar coisas muito mais transcendentes? Não pense nesses segredos, senhor Alberto. Nossa inteligência não os alcança. Aceite-os humildemente, apenas. O estudante ficou calado, a olhar a rosa no vaso. A conversa continuou viva e animada sobre vários assuntos. — O mundo teria muito mais paz se todos os que se dizem cristãos seguissem à risca os ensinamentos de Cristo, continuava Padre Afonso. Sim, pois nesses ensinamentos se acham contidos toda a sabedoria e todo o segredo do equilíbrio e harmonia das coisas. E a gente acaba compreendendo que deve agir bem, não por virtude, propriamente, mas por... esperteza e inteligência... porque é o que "dá certo" no final das contas... O grande erro de nossa época, meu amigo, é desvirtuar o sentido das coisas, mostrando como belo e atraente o que é feio e torto. Não pense que a religião condena a alegria. Muito antes pelo contrário. Quanto mais desprendidos nos tornamos dos mil e tantos laços relacionados com a matéria, mais livres nos tornamos. Sabia que Francisco de Assis vivia rindo e cantando? O estudante ficou calado, pensando. — Não imagina que livro maravilhoso é este, continuou o Padre, estendendo para Alberto o volume de Johannes Joergensen traduzido por Teodor de Wyzeuz "Saint François D'Assise — Sa Vie et son Oeuvre". A dedicatória que havia na primeira página surpreendeu o estudante: "A Padre Afonso, com a amizade e gratidão de Jean Graz". — Foi Mr. Graz, o professor de línguas, quem lhe deu esse livro? — Foi. Somos velhos amigos. — Conhece-o há muito tempo? — Sou confessor dele há três anos. — Que pensa de Mr. Graz? — É uma ótima pessoa. Alberto lembrou-se do suíço com simpatia. Gostava dele e, além disso, Verônica adorava-o. — Venha ver minhas abelhas, disse o Padre. — Ficará para outro dia, tornou Alberto. Esperam-me na Polícia ainda antes do almoço. Adeus. — Cara legal esse sujeito! pensava Alberto, enquanto dirigia o carro de seu pai, através das ruas da cidade. Acaba de saber que sua vida corre perigo, e, entretanto, convida-me a visitar a sua colméia..

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