Autor: R.P.Oliveira
Dizem que Goldendawn nunca dorme. A fama é verdadeira, já que sobre o reino um segundo sol paira, iluminando a cidade para sempre.
Arthur sempre detestou essa luz.
Ele a sentia agora, queimando seus ombros enquanto ajudava a mãe a dobrar mantos dentro de uma pequena casa branca, de janelas largas com apetrechos dourados. A luz que entrava pela casa iluminava todo o local. Lá não havia tochas ou lâmpadas — as próprias paredes refletiam toda a luz.
Mayra, mãe de Arthur, sorria com uma doçura cansada.
Ela ajeitava a costura do manto cerimonial, passando a palma da mão sobre o tecido como quem acaricia um filho.
— Mãe — murmurou Arthur, encostado no batente da porta — por que precisa ir a esse festival? Eles não podem fazer isso sozinhos?
Mayra ergueu o rosto. Os cabelos escuros estavam puxados num coque baixo. Seus olhos, claros como o amanhecer, encontraram os do filho com paciência.
— Porque é assim que Goldendawn sobrevive, Arthur. O Sol precisa de uma nova personificação. E uma das sacerdotisas será escolhida. Eu, como sacerdotisa, devo estar lá. Quem sabe o Sol não nos escolhe?
Arthur bufou, cruzando os braços.
— Não gosto desse Sol que quer tirar minha mãe de mim.
Ela riu, aquele riso suave que conseguia acalmar as nuvens mais pesadas da mente dele.
Se aproximou, ajeitou uma mecha do cabelo loiro de Arthur e encostou a testa na dele.
— É uma honra. E se eu for escolhida, você terá orgulho.
Ele desviou o olhar.
— Eu já tenho. Só não vejo sentido em toda essa cerimônia.
Mayra voltou para o manto, dobrando-o com cuidado.
— Vá até a Catedral e pegue o resto das minhas vestes. Não faça bagunça pelo caminho, entendeu?
Arthur ergueu uma sobrancelha, um meio sorriso brincando nos lábios.
— Eu? Fazer bagunça? Nunca.
Mayra suspirou, mas um canto de sua boca se curvou.
Arthur pegou a sacola de pano, saiu pela porta e observou os dois sois de longe. Mesmo para ele, que nasceu ali, ainda era lindo ver o segundo sol que sobrevoava Goldendawn como se tivesse sido dado a eles.
Ele caminhou pelo mercado, ignorando os pregões de comerciantes e os turistas extasiados. À sua volta, bandeiras douradas tremulavam, sacerdotes entoavam cantos e crianças corriam carregando flores puramente brancas, como todo o reino.
O Festival do Alvorecer era lindo para quem vinha de fora. Para Arthur, era só mais uma desculpa para deixar as pessoas de cabeça baixa, agradecendo por uma luz que nunca deixava espaço para a noite.
Enquanto subia a escadaria da Catedral, sentia um aperto estranho no peito.
Tentava ignorar — mas a cada degrau parecia que algo pesado o empurrava de volta.
Arthur se deparou com o portão da grande Catedral Solem Terrae. Respirou fundo antes de empurrar as portas. Por algum motivo, as portas não tinham peso algum, por mais enormes que fossem.
Lá dentro, o silêncio era tão puro que o barulho de seus passos soava como um trovão.
Vitrais dourados deixavam a luz do sol se partir em mil cores sobre o chão de mármore branco. O local brilhava mesmo sem ter uma única vela.
No altar principal, uma figura o esperava.
Era um homem alto, magro, vestido com um manto branco que parecia se fundir com o próprio clarão que o atravessava.
Uma bandana cinza cobria-lhe os olhos, que pareciam brilhar mesmo através do tecido. O ar em volta dele parecia mais frio — como se a luz se recusasse a tocá-lo por completo. No entanto, as roupas daquele homem eram mais brancas do que qualquer lugar que Arthur já tivesse visto.
Arthur pigarreou.
— Vim buscar as vestes da sacerdotisa Mayra. Disseram que estariam prontas. Você é o clérigo daqui?
O homem respondeu mesmo sem virar o rosto para a sua direção. Por algum motivo, mesmo com os olhos tampados, ele parecia olhar adiante — para um lugar que outros não podiam ver.
— Não. Meu nome é Lucius. Engraçado... pensei que todos neste mundo me conhecessem.
Arthur, enquanto observava o homem, retrucou:
— E por que eu deveria conhecer um homem que se veste como uma sacola de mercado?
Lucius sorriu e perguntou:
— Você é o filho dela, não é?
Arthur cruzou os braços, desconfiado.
— Como você sabe?
Lucius respondeu serenamente:
— Eu sou um Arcanjo. Conheço cada sacerdotisa que serve à Catedral e ao Sol.
Lucius entregou as vestes de Mayra a Arthur. Ele se despediu e saiu.
Do lado de fora, o festival fervilhava.
Mas cada passo de Arthur de volta para casa parecia mais lento, mais pesado.
Ele não sabia dizer por quê — só sentia que algo, em algum lugar, estava prestes a apagar todo aquele brilho.
O caminho de volta para casa parecia mais curto, mas Arthur sentia cada passo pesar como se arrastasse correntes.
A sacola com o manto de Mayra balançava em suas mãos, e ele apertava o tecido de vez em quando, como se fosse uma âncora pra não afundar em pensamentos que não queria ter.
Pelas ruas brancas de Goldendawn, o festival fervilhava ainda mais do que antes.
Sacerdotes abençoam fiéis ajoelhados, crianças corriam segurando coroas de flores, e pequenos estandartes dourados pendiam das sacadas.
Do alto, o segundo sol parecia mais próximo, queimando sem dó o couro exposto nos ombros de Arthur. Mesmo assim, ele não desviava o olhar — queria desafiar aquela luz que sempre exigia mais do que dava.
Quando se aproximou de casa, sentiu o ar parado.
A porta estava entreaberta, balançando com o vento quente.
Arthur parou no degrau. Ficou alguns segundos ali, imóvel, ouvindo apenas o som distante dos sinos da Catedral Solem Terrae.
— Mãe? — chamou, tentando soar casual. Nenhuma resposta.
Empurrou a porta com cuidado.
A luz invadiu a sala, mas não levou embora a sensação de vazio. O cheiro familiar de flores secas e ervas da mãe dele ainda estava lá — mas parecia misturado a algo que Arthur não conseguia nomear.
Subiu a escada devagar, sentindo cada degrau ranger sob seu peso.
No quarto, encontrou Mayra sentada na poltrona. Por um instante, ele viu sua mãe sentada calmamente no mesmo lugar que a havia deixado. Mas a cabeça caída para o lado, os cabelos desgrenhados sobre o ombro, diziam outra coisa.
Os olhos... não estavam lá. O rosto dela parecia ter sido queimado — como se alguém tivesse tentado arrancar a luz dali à força.
A sacola caiu das mãos dele, o manto se espalhando pelo chão.
Arthur se ajoelhou na frente dela. Tentou falar, mas a garganta secou, presa num soluço que não saiu. Segurou a mão fria da mãe, o toque rígido como pedra. Ao olhar para sua mãe ele ainda podia ver a delicadeza da sua face, mesmo que agora sem os olhos.
— Eu... eu trouxe o que você pediu, mãe — sussurrou. — Eu trouxe...
O festival continuava lá fora. Risos, orações, música. Mas dentro daquela casa, tudo era cinza.
Arthur não sabia há quanto tempo estava ali, quando ouviu uma batida seca na porta.
A voz do Padre Godwin ecoou pelo corredor, grave, mas doce demais para aquele momento.
— Arthur? Está tudo bem aí?
Arthur não respondeu. Godwin entrou, cobrindo a boca quando viu Mayra.
Pôs a mão no ombro do garoto, apertando de leve. Seu toque era morno, quase reconfortante.
— Filho... sinto muito. Não há palavras para isso. — Ele olhou rápido pela janela, como se buscasse algo nas ruas. — Prometo a você, quem fez isso pagará. Goldendawn é uma chama eterna. Nada escapa da luz do Sol.
Arthur sentiu vontade de rir.
A luz do Sol... Para ele, não passava de um punhal enterrado na garganta de quem mais amava.
O padre ficou em silêncio, apertando o ombro dele.
Talvez fosse só o calor do momento, mas por um segundo Arthur pensou ter visto um lampejo de inquietação nos olhos de Godwin. Já Godwin parecia triste após checar a casa de Mayra e descobrir que outra sacerdotisa havia sido assassinada, ha princesa Heloise era a única sobrevivente de todas as 4 candidatas.
No fim daquela tarde, o festival continuava.
A glória de Goldendawn jamais deveria cessar — mas Arthur só via ruínas queimadas em branco.