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Chapter 3 - DONATIEN

Desde o Conclave da Unificação, todos os filhos herdavam os títulos dos pais, e existia dizer desdenhoso entre os mestres "um dia existirão mais nobres que plebeus", pois, a exemplificar, um duque com três filhos e três filhas passava o título para os três filhos e para os três maridos das três filhas, diferente de antes do Conclave, onde apenas o primogênito herdava o título nobiliárquico do pai. Costume copiado das fhaurens, que levavam séculos para ter uma filha e não sofriam com essa inflação aristocrática. 

O cavaleiro Gremory Donatien D' Cecil ainda dormia naquela noite em centro.

Ao redor da mansão, hectares de pomares medrados bruxuleavam refletidos nas águas turvas. 

O lugar antes fora inóspito pântano. Com a chegada do bisavô dos D' Cecil, Álphons, teve início o plantio das macieiras, que cobriam a visão dos diques e estradinhas térreas. 

A governanta Ludovica despertou Donatien, e deixou as luzes elétricas, instaladas ainda no começo do ano, acesas tornando o quarto lucífero, o que se provou insuficiente para impedir o retorno do nobre ao sono profundo.

O pai, Ilarionovitch, cavaleiro transformado, cercado pela caterva de burgueses locais, excursionava ébrio pelos prostíbulos do ducado de Brejo da Alameda, no noroeste do reino de Nova Fronteira. 

Ainda comemorava a convocação do filho para a Árvore Cinzenta, e durante as últimas três semanas gastava como se prata fosse-lhe infinita. 

Outra das servas, Gavrél, menos pudica, puxou Donatien pelo pé, tirando-o das cobertas. 

Com parte do corpo desnudo, ele empurrou a garrafa de licor de medronho, produzido no alambique da família. 

Entre os pomares eram cultivados arbustos de amora e framboesa, além de castanheiras e medronheiros, cujas raízes desciam nos barrancos, margens dos inúmeros córregos ominosos.

Com as cobertas caindo ao chão, duas peças íntimas foram reveladas entre os lençóis. 

Gavrél reconheceu as calcinhas de seda, uma branca e outra azul-celeste, ambas rendadas. Pertenciam a duas das servas, Zenith e a prima dessa, Pomarola. 

Achou por bem esconder as intimidades. 

Caso descobertas, resultaria em novas discussões sobre moral e bons costumes com Munífrieg, a mãe do, para ela, menino. 

Distantes dali, se recuperando da noite azafamada, as duas servas, ainda letárgicas, despedir-se-iam dos seus, cada uma na própria residência, na vila dos empregados. 

Sem boas opções, Gavrél pegou a urna de alumínio rente ao samovar, e despejou a água gelada no nuca e nos cabelos do senhor. 

Ele gritou e atraiu a atenção da mãe, que passava rente à porta. 

Munífrieg Kadel D' Cecil olhou com aprovação para Gavrél, corada segurando a urna, e o gordo finalmente pôs-se a mover-se. 

Depois do banho, ao retornar ao quarto, trajou a camisa e a jaqueta de oficial em lã preta, de corte rígido, abotoada até o pescoço, com ombreiras marcadas e gola fechada, que delineava a silhueta farta de alguém que, por vinte e nove anos, só conheceu os prazeres da existência.

Nos punhos, pequenas faixas escarlates.

Calças azul-petróleo, retas, enfiadas em botas de couro preto de cano médio.

Cinto escuro, na fivela dourada gravado o emblema de Nova Fronteira, a estrela de nove pontas.

Boina de campanha, em veludo escuro, azulada na aba.

Esse, o uniforme militar do exército fronteirano. 

Atrasadas, em libré doméstica, os vestidos preto e branco com rendas e babados, vinham por corredores opostos. 

Zenith tinha o aspecto nortenho, de cabelos negros e olhos lilases, e chegava pela ala dos funcionários. 

Pomarola, apesar de quase cinco anos mais nova que a prima, aparentava a mesma idade. De cabelos ruivos, e olhar vermelho-rosado no mesmo tom do patriarca, o que era assunto evitado até então. 

Ela caminhava lentamente pelo corredor frontal. 

Se encararam em silêncio, e entraram no quarto com o brasão dos D' Cecil esculpido na porta, as seis fileiras de pomares entre cinco riscos verde-musgo. 

As duas foram contratadas ainda quando pré-adolescentes, e trabalharam como aias do nobre Donatien, que as manteve para si mesmo após as duas se casarem. 

Altas e de seios enormes, não eram permitidas pela senhora na presença do, raramente sóbrio, Ilarionovitch. 

Nos rostos, a beleza madura das mães de poucos filhos. 

Ignorando-as, Munífrieg, ufana da aparência diante de si, penteava os cabelos negros ondulados caindo ante os olhos da prole, e não se conteve, abraçando o filho.

— Que orgulho, o primeiro dos nossos entre os grandes. — e adicionou, sovina. — Os filhos das outras mais invejam-no que o temem, fique longe deles. E das servas deles. E do pai deles. 

— O pai deles é também o meu. — endossou Donatien desgostoso. 

O deles mencionado eram os treze filhos das outras três esposas de Ilarionovitch. 

— E isso não significa algo de bom. Você os superará, e enterrará os nomes de minhas rivais. Sou a segunda esposa. Que direito tenho diante da lei? Mais sou como concubina. E olha para você, aclamado pelo Séquito. — e o rosto de Munífrieg encheu-se de orgulho, mais de si que daquele a afastar os toques maternos pegajosos. — Não tema nenhum outro nome, são de todo o mundo, deles a opinião vale tanto quanto a proximidade. Sê egrégio, meu amado. — e os olhos de Munífrieg verteram lágrimas. 

Não separaria o filho de si, não fosse o som da carruagem a vapor, ligada pela terceira vez, a avisar da potência alcançada.

— Mãe, confie em mim. Retornarei trajado de triunfos. — a mãe olhou para o filho, que pouco ou nada sabia das realidades do mundo, e ressalvou às servas:

— Cuidem de meu primogênito. — Zenith e Pomarola foram puxadas pelas mãos de Munífrieg. — Meu amado é ainda inocente, e facilmente manipulável. — as duas servas, descabaçadas por aquele desviando o olhar, não concordaram com a afirmação, porém, não interromperam a mãe em seu sermão. — O que acontecer a ele será espelho às duas, e aos maridos e filhos das duas, compreenderam? 

— Sim, senhora. — sintetizaram as primas. 

As duas servas acompanhariam Donatien. E passariam quatro anos longe das famílias, o que gerou discussões encerradas sem consenso entre os plebeus. 

Nobres de maior renome possuíam verdadeiros cortejos de funcionários, e áreas para os mesmos, adjacentes a seus aposentos no fastuoso Castelo de Obsidiana. 

Assim partiram, com as mulheres levando as malas até a carruagem, e com o cocheiro Galitiéine acelerando pelas vias térreas entre os pomares. 

Brejo da Alameda surgiu em algumas horas, junto dos emaranhados fios e bondes elétricos. 

Donatien era o primeiro eleito da cidade, e havia jubilosa festa em seu nome. 

Os brasões dos D' Cecil tremulavam pendurados em coloridas bandeirinhas, por linhas que atravessavam as principais avenidas movimentadas. 

O porto resplandecia entre as falésias alvaiades, de terra como aquelas dos montes distantes ao sul. 

Muitas caravelas ancoravam no mar longe das docas, diante dessas, pesqueiros menores, barcos de carga, e catamarãs de travessia. 

Era a benemérita Brejo da Alameda a metrópole portuária mais importante no norte do continente de Férrea Crepuscular. 

As carruagens e embarcações levavam grãos, tecidos, e todo tipo de encomendas para os mais importantes portos e cidades margeando o Estreito dos Espinhos, o que criava trânsitos no Distrito Central por dia e noite. 

As rodas das carruagens rangiam, lado a lado no congestionamento da avenida principal, passando por fendas entupidas de fuligem e água salobra.

Edifícios de tijolos esbranquiçados e vigas enferrujadas empilhavam-se, cercados por quarteirões de fábricas soturnas ocultas na aziaga fumaça. 

Viam-se, pelas praças menores, estátuas de sapos em basalto, o símbolo do Brejo. 

Mesmo no Distrito Portuário muitas das pessoas andavam, entre mendigos e trabalhadores braçais, em suas melhores vestes, fraques e vestidos coloridos, saltos e escarpins, cartolas, braceletes e cordões com joias, e pujantes sobretudos. 

De madeiras enegrecidas pelo salitre, estendiam-se residências decadentes abaixo de gruas e guindastes. 

Os armazéns permaneciam carregados durante todo o ano.

Nesse distrito poluído, tavernas, de vitrais sujos e letreiros rúnicos, anunciavam mulheres e hidromel pelo mesmo preço. 

Sob os arcos de ferro fundido, que demarcavam os limites do Distrito Mercantil, multiplicavam-se as lojas, de famílias antigas, e de famílias plebeias, de estrangeiros, e de locais que nunca conheceram outro burgo. 

Perto dali, nas vielas dos quarteirões mais povoados, lavadeiras esfregavam roupas, em rochas rente a rios e esgotos desaguando no oceano. 

Pela praia velha, entre os metais disformes no cemitério de canteiros navais, crianças descalças mergulhavam, buscando de pistões a manômetros naufragados. 

A areia, parcialmente submersa, escondia ruínas da própria Brejo desaparecendo mar adentro. 

No baía arborizada, a construção da Catedral de Carbúnculo, com seu pináculo de cobre escarlate, e vitrais iridescentes retratando heroínas fháuricas da Chuva Eterna, protegia a maior das praças. 

Nos arredores, crianças, casais, famílias humanas e vampíricas, divertiam-se em noctívagos piqueniques abaixo dos álamos frondosos. 

O relógio da mais alta das torres nunca se atrasava, soando badaladas distorcidas por maciças engrenagens. 

O ar cheirava a óleo queimado, pão-de-mel e maré baixa, perfume tão contraditório quanto a própria cidade. 

— Senhor? — chamou Galitiéine por Donatien, que dormira com o rosto nos fartos seios de Pomarola, essa que, divertida, cutucou as barbudas roliças bochechas. 

Ao abrir os olhos, viu o rosto desconhecido além dos vidros da carruagem, e depois outro, e muitos outros mais, meninos e meninas, crianças bem vestidas e empolgadas. 

— Ele está aqui! Venham ver! — os pequenos gritavam e comemoravam diante da visão do eleito, o que criou generalizada confusão, e exigiu a ação dos guardas locais. 

Quando o nobre saiu da carruagem, seguiu na passarela improvisada com madeira de caixas usadas, finas, tremendo com o peso. 

— Acene, meu senhor. Estão aqui para ver-lhe. — garantiu Zenith, e, ovacionado pela multidão, Donatien saudou os desconhecidos. 

Diante deles, o enorme dirigível Via Gáudio. 

Enquanto caminhavam, na inclinação ao palanque, viam os piqueniques se desfazendo, e as famílias correndo na direção da multidão, gritando e braceando à passarela. 

Marcavam na memória o evento único, as testemunhas contariam aos filhos e netos sobre esse momento. 

No palanque, o duque, nobres menores, políticos, e burgueses influentes. 

Apertavam as mãos do jovem, e tiravam fotos, com a haste de magnésio em combustão a cada sorriso registrado. 

As grandes lentes nas máquinas intrigaram Gremory Donatien, e ele pensou em falar aos fotógrafos, pois era a primeira vez que via tais inventos, porém, o pai não permitiu. 

— Onde esteve? Fez a porra do dirigível da Árvore esperar-lhe! — bufava furioso Ilarionovitch. — Apressa o passo! Anda de uma vez! — e berrou. — Vai! 

Donatien desistiu dos fotógrafos, e entrou pela porta principal do dirigível enquanto era empurrado pelo pai.

As servas seguiram pelo elevador, levando os pertences, e o nobre adentrou o primeiro dos salões férreos com assentos. 

Depois, o funcionário da Academia fechou a porta dupla, e a trancou em movimento ensaiado. 

O palanque onde a oligarquia da cidade confraternizava estremeceu, equilibraram-se segurando uns nos outros, com a máquina levantando voo. 

O dirigível da Academia Arcana era vasto colosso de bronze polido e madeira de ébano, de formas alongadas que lembravam onírico cetáceo suspenso no ar. 

Pelas janelas arredondadas de vidro fumê desvaneciam-se vultos de estudantes. Os rostos borrados pela distância, como sombras observando a cidade de cima. 

Canos com bocais de cerâmica expeliram vapores por toda a praça, engolindo a catedral e a multidão, que vibrava entre as névoas. 

Os tecidos metálicos obscurecidos, nas laterais, possuíam o emblema da Árvore Cinzenta, com raízes para cima e galhos para baixo, em prata. 

Burburinhos acompanhavam os passos de Donatien. 

Olhavam para ele com nojo, irritados. 

Então, ele passou entre os bancos, com nobres de todas as idades lado a lado, e seguiu até outra divisão de assentos, percebendo cochichos e palavras raivosas. 

Resolveu seguir até a última divisão, que estava quase vazia. 

Foi quando sentiu a mão em seu ombro esquerdo. 

— Presumo que seja o cavaleiro dos D' Cecil? — a empáfia no tom de mestre Erlanês foi o suficiente para o libertino responder com polido cumprimento, o que não era do feitio dele. — Não preciso de sua porca educação. 

— Se civilidade é desnecessária, com sua licença. — retirou a mão do magro humano transformado de si, e ia-se, caso não interrompido pelos passos apressados do mestre. 

— Sabe que fez a todos nós esperarmos? Por mais de duas horas? Escutai-me, ignóbil. Sua falha terá preço. 

— E quanto míseras duas horas me custarão? 

— Não pagará com ouro ou prata. Será o primeiro a se apresentar quando chagarmos. Você lutará na exibição dos primeiranistas. O duelo antes do evento principal. 

— E de quem é o trono da atenção?

— Da arquiduquesa Gryzaekov e do príncipe Arkedievitch. O embate é aguardado desde as últimas férias de umbrosa. Estão noivos. E há o boato sobre ele a deixar vencer. — Erlanês, viciado em apostas, vislumbrava Donatien, o comparando com aquele que o enfrentaria. — Você não parece nada ruim, exceto em modos. 

— Grato. E meu oponente? 

— Outro dos novatos. Me cansa lembrar de tal imagem, está lá no fundo. — Erlanês pegou do bolso a haste do lorgnette, e depois com a mão livre segurou o papel amassado, com a lista de nomes dos primeiranistas. — É o jovem conde dos Vallensarnov. 

Após ouvir sobre responsabilidade de Erlanês, Donatien sentou no último banco, longo diante da mesa de faia com o desjejum, tendo atrás gloriosa janela de espelho unidirecional, com ampla visão do céu noturno, com os três anéis de asteroides parcialmente escondidos pelas nuvens. 

Lá também estava Tíwaz Étis Vallensarnov. 

O nome Étis foi escolhido pelo próprio Tíwaz, homenagem à mãe dele, e adicionado aos registros de adoção, pois dois nomes apenas, entre nobres, era considerado incomum. 

Outros alunos deixaram a divisão, a mera presença daquele sem modos atentava contra a honradez. 

— Tenho uma proposta. — principiou Gremory.

— De que tipo? — escutara Tíwaz a toda conversa desse homem misterioso com Erlanês, o mestre que o destratou pelo desleixo com que vestia o uniforme militar. 

— Preciso que perca a primeira luta. Para mim, no caso. Todos os desocupados de minha cidade vão acompanhar essa porra. Rádios e televisores não podem me expor derrotado. Posso pagar bem. E terá também minha amizade, carrego influência, e relações invejáveis por toda a nossa terra. 

Os televisores ainda eram novidade, mas todo bordel e taverna possuía rádios, que, além de lutas da academia, comentavam sobre os treinamentos dos nobres. 

Era comum que os incultos também se informassem com os programas de intriga e de fofoca. 

As casas de apostas fervilhavam com os nomes dos jovens, e existia até mesmo sistemas de espionagem, entre reinos, para desvendar os poderes vampíricos dos primeiranistas. 

— O que seria esse pagar bem? 

— Então há chance? — demonstrou ânsia Donatien, que por vezes era honesto por demais. — Vinte peças de ouro. 

— Esqueça. — era número absurdo, contudo, Tíwaz concluiu rapidamente, quem pagava vinte pagaria quarenta. 

— Não! Espere! Posso pagar vinte peças, por temporada. — e adicionou, em súplica. — Até a formatura, quatro anos, vamos, tem que aceitar, não posso perder. E, atente-se à parte segunda. Para alguns amizade é como a de cão, que quando alimentado é festa, e quando faminto é morte, não para mim, estimar-lhe-ei como a um irmão. 

Tíwaz não possuía nenhuma chance de vitória. Na verdade, na atual posição, mal sabia vestir as próprias roupas. 

E, legalmente, nunca teve em mãos uma só peça de ouro. 

Ele perderia de qualquer forma, no entretanto, não tinha como Donatien desconfiar disso. 

Então o plebeu estendeu a mão, e o nobre a segurou, gratificado pelo acordo. 

Ainda sobrevoavam as terras de Brejo da Alameda quando Gremory Donatien começou a falar e não parou mais, estava ansioso, e em abstinência de álcool, fumos, e bocetas, ainda assim, pareceu ser homem de bem. 

Com o passar dos dias, acostumaram-se a frequentar o segundo andar, onde viajavam os servos e servas.

Pomarola e Zenith foram apresentadas. 

Elas é que cuidavam das economias do cavaleiro, e delas Tíwaz recebeu mais que em toda a vida, primeiro pela bolsinha com as moedas, segundo pela apresentação e tratamento, como amigo. 

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