Antes do amanhecer o telefone tocou despertando Tíwaz.
Era a primeira vez que ele atendia tal máquina da modernidade contemporânea.
Tudo, do toque, até o contato com o metal álgido, acelerava a respiração dele.
Quando ouviu a voz do outro lado da linha, não reconheceu quem era:
— Você sabe como esquenta a água?
— Que água? — balbuciou Tíwaz ainda sonolento.
— Do ofurô. — era voz feminina, aguda.
— Quem é você?
— Yorranna.
— Quem?
— Sua duo. Nos conhecemos ontem. Você é o Tíwaz, certo? Ou a telefonista completou a ligação erroneamente?
Ao tirar o telefone do gancho, discando o número zero, a ligação ia para a central de telefonistas. A central encontrava, não importando o andar ou a província, o número de qualquer morador registrado na Árvore, e completava a ligação.
— Sou. — ele lembrou da fhauren da última noite. De cabelos lisos e loiros, com a pele dourada. — Não entendi, o que você quer?
— Minha serva foi dispensada. Não sei ligar essa coisa.
— Que coisa?
— O ofurô! Não está ouvindo? — a fhauren perdia a paciência. — Vem aqui me ajudar! — e ela desligou a ligação.
Respirando fundo, em pé no corredor, Tíwaz decidiu ignorar a chamada e voltou ao quarto.
Tinha feito anotações até quase desmaiar.
E as explicações de Moeg'Tullam eram severas, sem nenhuma paciência.
Por que tantos símbolos?
E por que escolheram logo um alfabeto de hieróglifos para a linguagem unificada?
De tudo o que aprendeu, algo não saía da mente dele, todos os poderes vampíricos eram adquiridos bebendo sangue fháurico
Na superfície, os nobres pagavam caro por isso, e a maioria dos abastados, até entre os burgueses, possuía algum tipo de dom sobrenatural advindo de alquimias sangrentas.
E, ali estava Tíwaz, tendo entrado em contato com o sangue da chanceler.
Ele deitou na cama sem sentir nenhuma diferença em si, e teria dormido se o telefone não tocasse sem pausa até ele atender.
— Você vem? — a voz antes irritadiça agora era chorosa.
— Não demoro.
Sem capacidade de usar parte das vestimentas no guarda-roupa, já presentes na residência quando ele chegou, Tíwaz escolheu longa camisa e das calças menos justas.
Os escarpins apertavam os calcanhares, mas não haviam outros tipos de sapato à vista.
Fora do chalé, a chave de ouro foi guardada no bolso.
Com o amanhecer, as brumas pesadas esconderam toda a luz natural.
Ao se aproximar da residência da fhauren, notou que Yorranna esperava-o à porta.
— Desculpe, você podia ter enviado de seus servos, não permiti, pois receio ficar a sós com vossa espécie.
— Eu também sou de minha espécie. E, estou sem servos.
— Sério? Há quanto tempo?
Toda a vida, ele pensou, mas não insistiu no assunto:
— Me mostra o ofurô.
Tíwaz não conhecia muitos dos móveis comuns das casas nobres, mas era bom em dedução, ou era o que imaginava.
No banheiro, no porão, o ofurô enorme tinha dezenas de registros e tubulações.
Alguns canos desciam para dentro da terra, e outros subiam para os andares elevados.
Assim, após mexer no que podia, sob os olhos atentos de Yorranna, que trajava apenas o roupão branco e toalha acima dos cabelos, ele seguiu o encanamento até o quintal.
Na sombra do maior dos carvalhos existia singela casinha de madeira, entre as raízes salientes, e lá, a caldeira e os dutos de água dispunham-se lado a lado.
Ele abriu o registro que vinha de fora, e todas as torneiras da casa da fhauren despejaram águas.
— Corre! — ela se desesperou, pronta para voltar e lidar com as torneiras abertas, contudo a água parou, com o registro principal sendo fechado por Tíwaz.
Juntos, eles verificaram uma a uma as torneiras dentro da casa, e depois religaram o encanamento na casinha externa.
Enfim, o ofurô começou a encher.
— Me vejo como triste parva. — ela agradeceu como se o garoto não tivesse feito mais que a própria obrigação, e ele voltou para casa.
Foi o tempo do menino entrar e o telefone tocou outra vez:
— Tíwaz! Você tem comida?
— Não vou levar para você.
Ir e voltar custara meia-hora da manhã dele.
— Por favor! Estou sem ninguém aqui para preparar para mim. — a voz novamente enternecida.
— Vem comer comigo, então.
— Sério?
— É. — ela ouviu e desligou imediatamente.
O percurso que ele levou quinze minutos, ela fez em cinco.
Entrou, e quando Tíwaz a percebeu, ela já estava no escritório.
O menino a encarara por tempo demais e ouviu:
— Que foi?
— Nada. — ele não tinha o costume da presença feminina, o que tornava cada palavra intrínseca luta. — Têm mantimentos na dispensa.
— Dispensa?
— Onde guardam os alimentos. A Academia preparou a casa para tudo durar, pelo menos, por uma temporada. — E seguiram até o quarto menor próximo da cozinha. Por fora a imagem dos chalés era semelhante, o que o menino estranhou, não seriam os interiores parecidos também? — Não tinha nada na sua cozinha? Tem certeza?
— Não sei.
— Você nem olhou? Não procurou nenhuma vez? — ela moveu a cabeça negativamente, enquanto pegava a lata com mangas em calda e outra lata menor, de leite condensado. — O quão mimada você foi?
— Que? — ela não prestava atenção nele, sem conseguir abrir as latas, desacostumada com qualquer mínimo afazer doméstico.
Tudo nas prateleiras dispunha-se enlatado, das menores às maiores folhas de ferro, farinhas, fermentos, frutas em calda, sucos, até alguns vinhos, e todo tipo de grãos.
Paredes inteiras com recipientes e rótulos em muitas línguas, com logotipos e nomenclaturas coloridas.
Na cozinha, ele ensinou ela a abrir as latas com os utensílios de prata, e depois se serviram, evitando de usar o forno.
Pessimamente alimentado, ele subiu para o quarto.
Escolhendo as vestes para as aulas, conforme as luminescências carmesins das brumas sombreavam os vidros das janelas, a presença dela o atraiu:
— Estudando matérias infantis? E que letra horrível é essa? — ela tinha em mãos a caderneta dele, com as rasuras e símbolos em caligrafia indecifrável.
— Não mexa nas minhas coisas! — Tíwaz perseguiu-a até a encurrar e tomar a caderneta, com Yorranna focando nas roupas sobre a cama:
— Vai usar dois coletes? Essas botas são para equitação, ou vai para aula de cavalo? E os escarpins são para os festins. E você agora usa boina? — a fhauren foi até a cama, segurando a boina escura azul-petróleo na aba.
— E você minissaia. — que seria o comum para chamar a atenção masculina nos períodos de aula.
— Sabe como os meninos chamam minissaia na corte? — ele foi até ela e pegou também a boina, jogando-a junto da caderneta no guarda-roupa aberto.
— Como?
— Abajur de… — ela pensara, e rira sozinha, não completando a anedota. Sugerindo. — Ajudo-te com o uniforme militar, e estamos quites pelas águas.
— Por que você não contrata outro servo?
— Minhas economias… — Yorranna fechou as mãos e as abriu, como numa mini explosão. — ... se foram. Culpa de minha…
Naquele instante, pela janela, desconhecida figura quebrou os vidros e invadiu o quarto.
Tudo o que Tíwaz fez foi se jogar acima de Yorranna, caindo atrás da cama.
Os vidros desfaziam-se pelo chão, e ele se reergueu junto da fhauren, que, descabelada, sussurrou:
— Irmã?
Na cozinha sentavam os três, Tíwaz e as duas arquiduquesas.
Bollomixiana, com talheres, comia das mangas que sobraram do café da manhã. Ignorou-a Tíwaz e ressalvou a duo:
— Sua irmã?
— Isso.
— A menina que terminou o noivado? — insistiu o duo.
— Essa crápula. — as duas não se olhavam.
Existia hostil clima pesado entre as nobres.
— Desculpe-me por sua janela. Imaginei, por você ser humano, que estivesse estuprando e destruindo minha querida irmã. — Bollomixiana resumiu dessa forma, em tom corriqueiro, a entrada que arrebentou a maior das janelas do segundo andar.
Ele, conhecendo os humanos, não julgou o preconceito dela.
— Querida irmã? Tudo o que tinha de fazer era se casar! Conseguiu ser deserdada por nosso pai, e o pior, ele pediu a separação de sua mãe, e da minha!
— Isso é com eles, não com nós duas.
— É com nós duas também! Eu perdi os servos e minha pensão! O que vou fazer até a formatura? — gritando, Yorranna saltou por cima do balcão visando enforcar a faminta irmã mais velha.
Tíwaz a segurou no ar, e essa se tornou a manhã mais longa da vida dele.
