WebNovels

Chapter 41 - Momentos de Paz em Tempos de Sombra.

O jardim interno da mansão Freimann era um pequeno paraíso, especialmente naquele fim de tarde dourado. O sol, já em sua descida para o horizonte, pintava tudo com uma luz âmbar que transformava o comum em mágico. O gramado amplo e bem cuidado se estendia como um tapete verde-esmeralda, pontilhado aqui e ali por flores que reagiam à presença de energia arcana – lírios de cristal que se abriam em um espetáculo de cores quando alguém com afinidade elemental se aproximava. Árvores antigas forneciam sombras generosas, suas folhas sussurrando segredos ao vento suave. Bancos de pedra polida, dispostos estrategicamente, convidavam à contemplação e ao descanso.

No centro do jardim, uma fonte de mármore branco jorrava água cristalina, onde peixes cintilantes – uma espécie rara criada por arcanistas – nadavam em círculos preguiçosos, suas escamas refletindo a luz do sol como pequenos espelhos em movimento. O som da água caindo criava uma melodia constante e reconfortante, como se o próprio jardim respirasse em um ritmo tranquilo.

Cinco dias haviam se passado desde o ataque ao vilarejo. Cinco dias de vigilância redobrada, reuniões tensas e preparativos para o que poderia vir a seguir. Mas naquele momento, naquele jardim, era quase possível esquecer as sombras que se adensavam além dos muros da mansão.

Eu observava, recostado contra o tronco de um carvalho antigo, as duas crianças que brincavam animadamente no centro do gramado. Vivian, minha irmã, agora com oito anos, e Nico, o irmão mais novo de Belle, um garotinho de quatro anos com cabelos em um leve tom avermelhado e olhos cinzentos curiosos. Nico havia chegado com a família Stein há cinco dias, para uma visita prolongada enquanto nossos pais e o Conde e a Condessa discutiam estratégias de defesa e investigação.

Vivian estava radiante. Há apenas três dias, ela finalmente havia alcançado o estágio Centelha, sua Runa evoluindo de Bruma para o próximo nível. Diferente de mim, com minhas três afinidades, Vivian descobrira que possuía afinidade exclusivamente com a água – algo que a deixara inicialmente desapontada, até que minha bisavó Margareth lhe explicara sobre a profundidade e versatilidade desse elemento. “A água é vida, pequena”, dissera ela. “É adaptável, persistente e mais forte do que parece. Como você.”

— Eu sou o grande explorador arcano! — declarou Nico, brandindo um graveto como se fosse uma espada, em uma imitação adorável de sua irmã Belle durante os treinos. — Vou derrotar todos os monstros!

Vivian riu, segurando seu próprio “cajado mágico” – outro graveto, mas decorado com algumas folhas e flores que ela havia amarrado cuidadosamente.

— Cuidado, Explorador Nico! — advertiu ela em tom dramático. — Há criaturas invisíveis por toda parte!

Nico arregalou os olhos, entrando completamente na brincadeira. Ele começou a girar em círculos, golpeando o ar com seu graveto-espada, fazendo sons de batalha com a boca.

— Toma isso! E isso! — gritava ele, saltando e estocando contra inimigos imaginários.

Foi quando algo inesperado aconteceu. Vivian, empolgada com a brincadeira, concentrou-se demais em seu papel de “arcanista exploradora”. Sem perceber, canalizou um pouco de sua recém-despertada energia arcana através de sua afinidade com a água. Um pequeno banco de névoa começou a se formar ao redor dos pés das crianças, uma bruma fina e branca que parecia surgir do próprio chão.

Nico parou sua batalha imaginária, olhando para baixo com os olhos arregalados.

— Vivi! Você tá fazendo feitiço de verdade! — exclamou ele, metade assustado, metade maravilhado.

Por um instante, Vivian pareceu tão surpresa quanto ele. Então, um sorriso orgulhoso iluminou seu rosto.

— Eu... acho que sim! — respondeu ela, observando a névoa que dançava ao redor de seus tornozelos.

Nico soltou uma risada de pura alegria e, em vez de se afastar, correu para se esconder atrás de Vivian, agarrando-se à sua saia.

— Me protege dos monstros invisíveis, Vivi! — pediu ele, rindo.

E assim a brincadeira continuou, agora com um elemento de magia real. Eles corriam pelo gramado, rolavam na grama, se sujavam e riam alto, inventando histórias cada vez mais elaboradas sobre monstros invisíveis e tesouros escondidos. A névoa de Vivian aparecia e desaparecia, respondendo inconscientemente às suas emoções, criando um cenário ainda mais mágico para suas aventuras imaginárias.

— Eles parecem felizes.

A voz suave ao meu lado me fez virar a cabeça. Belle havia se aproximado silenciosamente e agora se sentava ao meu lado no banco de pedra sob o carvalho. Seus cabelos vermelhos brilhavam no sol da tarde, e seus olhos âmbar, observavam as crianças com um misto de carinho e melancolia.

— Sim — concordei, voltando meu olhar para Vivian e Nico, que agora fingiam escalar uma montanha perigosa (que na verdade era apenas um pequeno monte de grama mais alta). — É bom vê-los assim. Especialmente depois de... tudo.

Belle assentiu, puxando os joelhos contra o peito e apoiando o queixo sobre eles.

— Engraçado... — comentou ela após um momento. — Parece que foi ontem que eu tinha o tamanho da Vivian.

Não pude conter um sorriso provocador.

— Você? Pequena? Isso não mudou muito — respondi, deixando escapar uma risada.

Ela me deu um empurrão leve no ombro, mas também sorria.

— Idiota — murmurou, sem real irritação na voz.

Ficamos em silêncio por alguns instantes, apenas observando as crianças brincarem. Nico agora montava nas costas de Vivian, que fingia ser um dragão manso, soltando rugidos exagerados que faziam o menino gargalhar.

— Eles ainda não fazem ideia do mundo que espera lá fora... — disse Belle finalmente, sua voz mais baixa, quase um sussurro. — Queria que eles pudessem ficar assim para sempre.

Senti um peso se instalar em meu peito. Belle colocara em palavras exatamente o que eu estava pensando.

— É... — respondi, pensativo. — Mas acho que até mesmo a gente queria isso, né? Só ficar aqui. Sem feudos, sem bestas, sem seitas.

Olhei para Vivian, com seus oito anos, e para Nico, com apenas quatro. Tão jovens, tão inocentes ainda, apesar de tudo. Lembrei-me de quando eu tinha a idade de Vivian, quando minha maior preocupação era aprender a controlar minha afinidade com o fogo sem queimar acidentalmente as cortinas.

Belle e eu nos olhamos por um instante, em silêncio. Não precisávamos dizer mais nada. Ambos entendíamos o peso da responsabilidade que sentíamos, o desejo de proteger nossos irmãos mais novos de um mundo que se tornava cada dia mais perigoso.

O silêncio se estendeu, mas não era desconfortável. Era o tipo de silêncio que só existe entre pessoas que se entendem profundamente. O vento suave balançava os cabelos de Belle, e os últimos raios de sol criavam um halo dourado ao seu redor. Percebi que estava olhando para ela por tempo demais e desviei o olhar, sentindo um calor estranho nas bochechas.

Belle ficou em silêncio por alguns segundos, seus olhos fixos nas crianças brincando. Então, como se tomasse coragem, virou-se para mim e disse, meio sem jeito:

— Sabe... quando eu tô com você, parece que tudo faz mais sentido.

Ela desviou o olhar imediatamente, mexendo em uma mecha do próprio cabelo vermelho, enrolando-a nervosamente entre os dedos.

Senti meu coração acelerar e um nó se formar em meu estômago. Não era apenas a ansiedade comum de um garoto diante de palavras tão diretas. Era algo mais profundo, mais complexo. Era a confusão de alguém que carregava o peso de outra vida dentro de si.

“Será que é certo eu... sentir isso? Será que é justo?” A pergunta ecoou em minha mente, trazendo consigo uma onda de culpa e dúvida. “Eu sou... eu sou mesmo esse garoto, ou sou só alguém ocupando esse corpo?”

As memórias de minha vida passada, fragmentadas mas vívidas, pulsavam em minha consciência. Lembrei-me da raiva, do ódio que havia sentido. Da satisfação sombria ao torturar e matar Luiz, mesmo que por vingança. Aquelas mãos – minhas mãos em outra vida – haviam tirado uma vida, e eu havia sentido prazer nisso.

E agora, aqui estava eu, sentindo algo tão puro, tão inocente por Belle. Algo que parecia não me pertencer por direito.

Observei-a de soslaio. Ela era tão viva, tão cheia de energia e luz. Seu sorriso era genuíno, seus olhos âmbar brilhavam com uma alegria que parecia vir de dentro. “Eu deveria me permitir isso? Um sentimento tão puro... se no fundo eu sou alguém que já não deveria mais estar aqui?”

Em minha vida passada, nunca tive a chance de experimentar esse tipo de amor. Algo simples, puro, sem as complicações e amarguras que haviam me consumido. Isso me fazia desejar essa conexão com Belle ainda mais intensamente, mas também aumentava meu sentimento de culpa por talvez desejá-la.

“Se eu sou alguém que carrega memórias de uma vida que acabou... então isso aqui, essa vida... é mesmo minha? É justo sentir o que sinto por ela? Eu que torturei alguém e matei, mereço ser feliz com alguém que é pura?”

— Tá tudo bem? — A voz de Belle me arrancou de meus pensamentos sombrios. Ela me olhava com preocupação genuína, notando meu silêncio prolongado e a expressão séria que devia estar em meu rosto.

Forcei um sorriso, tentando afastar as sombras de minha mente.

— Só... pensando — respondi vagamente.

Belle não insistiu. Em vez disso, fez algo que me pegou completamente desprevenido. Ela se aproximou mais, deixando seu ombro encostar no meu. Um gesto simples, mas que dizia muito: “Tudo bem, não precisa falar.”

O calor de seu corpo tão próximo ao meu enviou uma onda de sensações contraditórias através de mim. Conforto e culpa. Desejo e medo. Pertencimento e estranheza.

Ficamos assim por algum tempo, observando Vivian e Nico em sua brincadeira interminável. O sol descia cada vez mais no horizonte, pintando o céu em tons de laranja e rosa, lançando sombras longas pelo jardim.

— Você... é meio estranho às vezes, sabia? — disse Belle de repente, encarando-me com aquele olhar meio desafiador, meio tímido que só ela conseguia fazer.

Antes que eu pudesse responder, ela continuou, sua voz baixando para quase um sussurro:

— Mas... acho que é por isso que eu gosto de você assim.

No instante em que as palavras deixaram seus lábios, suas bochechas se tingiram de um vermelho intenso. Percebendo o que acabara de dizer, Belle se levantou abruptamente, murmurando algo sobre ir verificar Vivian e Nico, e se afastou rapidamente, claramente tentando esconder o rosto corado.

Fiquei paralisado no banco de pedra, incapaz de me mover ou falar. Meu coração batia tão forte que eu podia senti-lo em meus ouvidos. “Ela gosta de mim... de quem ela acha que eu sou... mas será que eu... sou mesmo esse Elian?”

A guerra interna entre o desejo de corresponder aos sentimentos de Belle e o peso de minha existência complexa atingiu seu auge. Parte de mim queria correr atrás dela, dizer que também gostava dela, que ela fazia meus dias mais brilhantes. Outra parte queria recuar, protegê-la de mim mesmo, da escuridão que eu temia ainda habitar em algum canto de minha alma.

Mas enquanto observava Belle se juntar a Vivian e Nico, rindo com eles, ajudando-os a construir um pequeno forte de galhos caídos, algo dentro de mim começou a mudar. Um calor diferente, não de vergonha ou culpa, mas de esperança, começou a se espalhar em meu peito.

“E se... e se essa vida for a chance que eu nunca tive?”

O pensamento surgiu suavemente, como o primeiro raio de sol após uma longa noite. Talvez esta nova existência não fosse uma punição ou um erro cósmico. Talvez fosse uma oportunidade. Uma chance de viver diferente, de ser melhor, de experimentar coisas que me foram negadas antes.

Olhando para Belle, com seu cabelo vermelho brilhando no sol poente, uma decisão silenciosa começou a se formar em meu coração: “Não importa o passado. Agora... eu sou Elian.”

Quando Belle finalmente voltou, alguns minutos depois, ela parecia um pouco nervosa, evitando meu olhar diretamente. Sentou-se novamente ao meu lado, mantendo uma distância ligeiramente maior que antes, seus dedos brincando distraidamente com a barra de sua túnica.

Respirei fundo e, em um impulso de coragem que surpreendeu a nós dois, estendi minha mão e segurei a dela levemente. Não disse nada. Apenas segurei sua mão, meus olhos fixos em Vivian e Nico, que agora estavam sentados na grama, aparentemente exaustos de tanto brincar.

Senti Belle enrijecer por um instante, surpresa. Pelo canto do olho, vi suas bochechas queimarem novamente, mas ela não puxou a mão. Aos poucos, seus dedos se entrelaçaram aos meus, e um pequeno sorriso que ela tentava esconder surgiu em seus lábios.

O silêncio entre nós, pela primeira vez, não era apenas confortável. Era aconchegante. Era como se tivéssemos criado nossa própria bolha de paz em meio ao caos do mundo.

Enquanto o sol se punha no horizonte, tingindo o céu com as últimas cores do dia, uma nova sensação de paz se instalou em mim. “Talvez... talvez eu não precise entender tudo agora. Talvez... só viver seja suficiente. Pelo menos... enquanto ela estiver ao meu lado.”

Nosso momento foi interrompido por um grito agudo. Nico havia tropeçado em uma raiz saliente e caído de joelhos na grama. Por um instante, seu rosto se contorceu naquela expressão universal que precede o choro infantil. Belle já estava se levantando para ir até ele quando Vivian agiu primeiro.

Minha irmã se ajoelhou ao lado do menino, ajudando-o a se levantar com uma gentileza surpreendente para alguém de sua idade. Ela examinou o joelho dele, que estava apenas levemente arranhado, e então, com toda a seriedade do mundo, soprou suavemente sobre o ferimento.

— Pronto — declarou ela, com a confiança de um curandeiro experiente. — Tá curado.

Nico piscou, olhou para o joelho como se esperasse ver alguma mágica acontecer, e então sorriu, o choro completamente esquecido. No instante seguinte, os dois estavam correndo novamente, como se nada tivesse acontecido.

Observei a cena com um sorriso, sentindo um orgulho inexplicável de minha irmã mais nova.

— Acho que eles são mais fortes do que parecem — comentei, ainda observando as crianças.

Belle cruzou os braços, um sorriso confiante em seus lábios.

— Igual a gente — respondeu ela, com uma certeza que aqueceu meu coração.

E naquele momento, sob o carvalho antigo, com o sol se pondo no horizonte e pintando o céu em tons de laranja e rosa, com o som das risadas infantis preenchendo o ar, eu quase acreditei que tudo ficaria bem. Que, apesar das sombras que se adensavam além dos muros, ainda havia luz suficiente para nos guiar. Que éramos, de fato, mais fortes do que parecíamos.

Mais fortes juntos.

More Chapters