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Chapter 18 - Moldando a Vontade.

Acordei antes do sol raiar. Ainda era madrugada, e o céu carregava aquele tom pálido e expectante entre o azul profundo e o cinza iminente. Vesti-me em silêncio, sentindo o peso e a promessa das palavras de Margareth ainda vibrando em minha memória: “dar forma à Vontade”. Eu não fazia ideia de como isso era feito concretamente, mas algo dentro de mim, uma curiosidade intensa, ardia para descobrir.

Quando cheguei ao campo de treinamento, ela já estava lá — como sempre. Sentada sobre a mesma pedra lisa, qual uma guardiã ancestral do tempo, envolta em seu manto escuro, com os cabelos grisalhos presos em um coque impecável. A quietude ao seu redor era quase palpável.

— Pontual — disse ela, sem me olhar diretamente, o olhar fixo no horizonte que começava a clarear. — Seu corpo chegou. Veremos se sua mente também o acompanhou.

Assenti em silêncio. Eu ainda tentava despertar por completo, sacudir os últimos resquícios de sono e preparar-me para o que viria.

— Hoje você não irá conjurar feitiços. Nem canalizar energia de forma bruta — Margareth ergueu-se com uma suavidade que contrastava com a intensidade que agora brilhava em seus olhos. — Você irá moldar.

Ela caminhou até o centro da arena de terra batida e fincou a ponta de sua bengala simples no chão, marcando um ponto.

— A Vontade, Elian, é como argila em brasa. Quente, difícil de tocar diretamente, mas surpreendentemente moldável se você souber como manuseá-la com respeito e precisão. Você já a sentiu pulsar. Agora, precisa imbuí-la de intenção clara.

— Intenção? — perguntei, a palavra ecoando na quietude da manhã.

— A energia arcana, em sua essência, é neutra, quase ‘cega’ à nossa realidade imediata. Ela responde à emoção crua, mas isso a torna perigosa e instável, como um animal selvagem assustado. Você aprenderá a ensinar sua Vontade a compreendê-lo — e, mais importante, a obedecê-lo com precisão.

Com a ponta da bengala, ela desenhou no chão o contorno de um círculo, dentro do qual traçou linhas que formavam um símbolo complexo e desconhecido para mim: um triângulo inscrito em um quadrado, ambos atravessados por uma delicada espiral.

— Este é um Selo de Condensação. Não tente replicá-lo agora, apenas observe — disse, estendendo a mão direita com os dedos levemente afastados.

Um leve brilho dourado dançou sobre sua pele, como minúsculas partículas de poeira iluminadas pelos primeiros raios de sol. A energia não explodiu — não queimou. Tomou forma, semelhante a um véu de luz líquida, e condensou-se na palma de sua mão até formar uma pequena lâmina de luz cintilante, perfeitamente definida.

Ela a segurou por um instante, a lâmina pulsando suavemente... e então a desfez com um sopro quase imperceptível.

— Não se trata de feitiçaria complexa. Nem de encantamento formal aprendido em livros. É a forma mais pura de conjuração: intenção canalizada e manifestada diretamente pela Vontade. Você tentará fazer algo semelhante. Mas, claro... — ela sorriu de canto, um brilho astuto nos olhos — à sua própria maneira, começando pelo básico.

Sentei-me sobre os calcanhares, adotando a postura de meditação que ela me ensinara, e fechei os olhos.

Lentamente, como na tarde anterior, convoquei minha energia interna. A runa na mão esquerda ardeu com familiaridade, e o calor percorreu meu braço como um rio de brasas vivas. Mas, desta vez, não forcei a manifestação externa. Apenas... imbuí a energia de um propósito claro e simples.

“Permaneça comigo. Reúna-se. Tome forma.”

A energia tremeu, instável, rebelde. Era como tentar conter fumaça etérea entre os dedos. Mas algo reagia à minha Vontade focada. Algo começava a ceder ao meu comando silencioso.

“Não destruir. Construir.”

Senti um foco de calor na palma da mão... tornando-se mais denso, mais presente, mais real.

— Mantenha. Não force — disse Margareth, sua voz calma agora postada ao meu lado, guiando-me.

Tremi levemente. O suor frio escorreu por minha têmpora. Meus dedos começaram a arder com a concentração crescente de energia.

— Continue. Visualize a forma desejada. Algo simples. Uma esfera, talvez. Dê a ela um contorno definido, uma superfície estável.

Respirei fundo, buscando a calma em meio ao esforço.

Fiz exatamente isso. Imaginei uma esfera de energia ígnea. Não flamejante, não agressiva ou caótica. Apenas quente. Contida. Com bordas nítidas, bem definidas, como uma pequena pérola de luz.

E ali... ela começou a surgir.

Uma pequena esfera alaranjada flutuou hesitantemente acima de minha mão. Era do tamanho de uma noz. Vacilante, tremeluzente, quase ameaçando se dissipar a qualquer instante, mas inegavelmente real.

Quando abri os olhos, Margareth já me observava, a expressão contida, mas com um brilho inconfundível de satisfação em seus olhos experientes.

— Primeira Forma — disse ela, a voz carregada de um significado que eu começava a compreender. — O que você fez... é o primeiro passo para a conjuração silenciosa. Para os encantamentos verdadeiros que nascem diretamente da Vontade, sem a muleta dos gestos ou palavras.

A pequena esfera dissipou-se poucos segundos depois, sua luz se extinguindo suavemente, mas isso não importava. Eu a havia criado. Eu a havia moldado, mesmo que por um breve instante.

— Amanhã — continuou ela — você manterá essa forma por mais de um minuto. E, se conseguir, aprenderá a movê-la com sua Vontade, a direcioná-la.

Ela virou-se, como se minha obediência e dedicação fossem um fato consumado, uma expectativa natural.

E eu obedeceria. Pela primeira vez, uma forma nascida de minha própria alma respondera ao meu comando silencioso. E se aquilo era apenas o começo... então eu mal podia esperar pelo dia seguinte, pelas próximas descobertas.

A pequena esfera desapareceu... mas o calor residual que deixou em minha mão e em minha alma não se apagou. Permaneceu ali, como uma lembrança vívida e palpável de que era possível. E naquele instante, mesmo com apenas três anos de idade neste corpo, compreendi algo fundamental que transcende o ensino por palavras: o poder residia não na força bruta, mas no controle sutil da intenção.

Mas Margareth, como sempre, não me permitiu descansar sobre os louros da pequena vitória.

— Agora vem a parte mais desafiadora — disse, caminhando em círculos lentos ao meu redor, como um predador avaliando sua presa... ou um mestre testando seu discípulo. — Quando se utilizam selos, o gesto físico guia a energia, oferece um caminho. Mas você... você não terá esse auxílio externo. Usará apenas a Vontade pura. É um caminho perigoso, instável e... se dominado, absolutamente magnífico em seu potencial.

Ela parou, olhou em meus olhos, depois apontou para meu peito.

— Aqui dentro, Elian, existe um campo sutil. Um ponto de ressonância entre alma e corpo físico. Quando esse ponto vibra, é o primeiro sinal de que sua Vontade está despertando em um nível mais profundo, mais conectado à essência. A maioria dos adultos só percebe essa vibração durante rituais complexos ou sob pressão extrema. Mas os verdadeiros Arcanistas que dominam a conjuração silenciosa... aprendem a escutar esse ponto como se ouvissem um sussurro no mais absoluto silêncio.

Assenti devagar. Minha mente racional ainda lutava para compreender completamente, mas meu corpo parecia reconhecer a verdade em suas palavras. Já havia sentido aquela vibração sutil antes: era como um fio quente estendendo-se entre a garganta e o estômago, como se algo antigo e vivo me tocasse por dentro, um chamado silencioso.

— Novamente — ordenou ela. — Desta vez, sem forçar a manifestação externa. Apenas escute sua ressonância interior. Sinta o ponto de origem.

Sentei-me novamente. Fechei os olhos. Respirei profundamente, buscando a quietude.

E então busquei aquele lugar interior — aquela fronteira silenciosa onde o pensamento cessa e a tensão muscular se dissolve, restando apenas a quietude da espera atenta. E lá estava. Um calor tênue. Não ardia, não pressionava. Apenas pulsava suavemente, como um coração oculto.

Margareth sussurrou, sua voz próxima ao meu ouvido, quase um pensamento compartilhado:

— Essa sensação... é o primeiro vislumbre do Nexo Arcano. O ponto onde a Vontade se conecta diretamente à essência energética do mundo e de si mesmo. Quando não há selo, nem gesto, nem palavra... há apenas comunhão. O poder não é invocado à força. Ele é... convidado a se manifestar através de você.

Concentrei-me. Visualizei a energia como uma pequena chama interior, mas desta vez não tentei moldá-la ativamente. Apenas a observei com os olhos da mente, como quem contempla a dança efêmera e delicada de um vaga-lume na palma da mão em uma noite escura.

Gradualmente, senti a luz se formar. Uma pequena esfera de calor surgiu sobre minha mão — tênue, quase insubstancial, mas inegavelmente viva. Pela primeira vez, não precisei ‘fazer’. Bastou ‘permitir’ que acontecesse, alinhar minha intenção com a energia.

Margareth aproximou-se, a voz baixa, quase reverente, como quem testemunha um pequeno milagre desabrochar.

— Para aqueles que trilham o caminho da conjuração silenciosa... este é o verdadeiro começo. A chama sem comando verbal ou gestual. A Vontade que se manifesta pelo sentir, não pelo dizer. Você está adentrando um domínio que poucos ousam explorar, Elian.

— E se escapar? — murmurei, ainda sentindo a energia vibrar sutilmente em meus dedos, temeroso de perder aquele frágil controle.

— Então você a acolhe novamente, com paciência. A energia não é sua inimiga, Elian. Mas tampouco é sua serva dócil. É como uma força selvagem e primordial que, se respeitada e compreendida em sua natureza, pode caminhar ao seu lado como uma aliada poderosa e leal.

Permiti que a esfera se desfizesse suavemente, não por falha, mas como um exercício de controle. Não por medo — mas com um sentimento de gratidão pela experiência e pelo vislumbre de potencial. E vi a runa em minha mão esquerda brilhar por um breve instante, um fulgor quente, como se reconhecesse e aprovasse o que eu havia realizado.

Então, sem dizer uma única palavra, ela afastou-se lentamente, deixando-me sozinho no campo de treinamento. O silêncio instalou-se novamente, preenchido apenas pelo murmúrio do vento. Ele passava entre as folhas das árvores e varria o chão em redemoinhos suaves, como se também praticasse sua própria forma de fluxo energético, sem esforço aparente — apenas pura intenção em movimento. Sem perceber, comecei a tentar imitar essa fluidez natural em minha própria prática.

Estendi as mãos novamente.

Fechei os olhos.

Tentei invocar a centelha de energia mais uma vez, sem selos, sem palavras. Apenas com o sentir, com a comunhão silenciosa. Mas nada aconteceu.

Meu peito contraiu-se em frustração momentânea.

Inspirei... Expirei. Liberei a tensão.

Abandonei a tentativa de ‘criar’ ativamente. Apenas me permiti ‘estar’, presente no momento, aberto à energia.

Um leve calor surgiu, tímido, frágil. Mas, ao tentar contê-lo com demasiada avidez, ele escapou entre meus dedos mentais, dissipando-se como névoa ao toque do sol. Primeiro erro da nova tentativa — excesso de ansiedade, falta de confiança no processo.

Tentei outra vez.

Desta vez, firmei meu centro de gravidade, como se fincasse raízes profundas no solo sob meus pés, buscando estabilidade. A energia respondeu. Vibrou intensamente. Mas cresceu rápido demais, tornando-se instável e ‘queimando’ antes de se formar completamente, escapando como água entre os dedos de uma criança impaciente. Segundo erro — tentativa de controle excessivo e prematuro, forçando o ritmo.

Tentei pela terceira vez.

Agora... diferente. Não impus minha Vontade de forma autoritária. Não pedi permissão com hesitação. Apenas acolhi a energia com aceitação. Senti o ponto onde a chama interior começa — naquele centro sutil, entre a respiração calma e o desejo sereno de manifestação. E ali, permiti que a energia surgisse, como quem segura um passarinho delicado: nem com força excessiva a ponto de esmagá-lo, nem com frouxidão a ponto de deixá-lo escapar.

Ela permaneceu. Um instante. Dois. Estável, quente, presente.

E então se dissipou — não por falha minha, mas por minha escolha consciente de liberá-la, de encerrar o ciclo.

Compreendi mais profundamente: a Vontade não se aprisiona; ela se guia com sabedoria e respeito.

Continuei praticando assim por um longo tempo. Às vezes, a energia surgia desgovernada, escapando em pequenos estalos crepitantes no ar ao meu redor, como faíscas rebeldes. Outras vezes, simplesmente não respondia, como se meu corpo tivesse momentaneamente esquecido onde residia aquele centro de poder sutil, a conexão com o Nexo.

Mas a cada erro, a cada falha, a cada pequena explosão de energia descontrolada ou silêncio frustrante, algo em mim amadurecia. Um saber que não vinha de livros ou lições verbais, mas da experiência direta, gravado na alma. Um sentir que atravessava a barreira entre corpo físico e pensamento consciente, unindo-os.

Em certo momento, notei meu corpo coberto de suor, minhas mãos levemente trêmulas pelo esforço contínuo e pela concentração intensa, mas meu peito... estranhamente leve, quase eufórico. A fadiga que sentia não era de exaustão debilitante. Era a fadiga da revelação, do aprendizado profundo que reconfigura o ser.

O domínio da Vontade exige o ser inteiro — corpo, mente e espírito em harmonia —, mas recompensa com um entendimento que transcende a lógica comum.

Era como reaprender a andar, mas em um plano interior, descobrindo músculos e sentidos da alma que eu nem sabia que existiam.

Cada tentativa me fazia perceber o quão desconectados meu corpo físico e minha alma ainda estavam em muitos aspectos, como se não falassem a mesma língua arcana fluentemente. Mas havia progresso. Lento, quase imperceptível para um observador externo, mas real e profundo para mim. Era como se uma porta interior estivesse se abrindo, centímetro por centímetro, revelando um potencial que sempre esteve ali, latente, adormecido, mas que eu nunca havia verdadeiramente percebido ou acessado.

E então, em meio a uma dessas tentativas, enquanto a energia fluía dentro de mim como um rio sereno e contido, pronta para ser moldada, surgiu uma pergunta — suave, mas profunda, como um eco vindo de um lugar muito antigo em minha consciência:

“O que exatamente é o Nexo Arcano? Qual sua verdadeira natureza?”

Eu já ouvira esse termo. Margareth o mencionara algumas vezes com reverência, como algo fundamental para a conjuração silenciosa e para aqueles que retornaram da morte. Mas agora, sentindo a energia circular dentro de mim, contida, respondendo à minha intenção silenciosa, comecei a suspeitar que talvez o Nexo não fosse um ponto físico ou uma estrutura definida... mas sim uma ponte. Um espaço de conexão invisível e luminoso onde intenção, alma e corpo físico convergiam em perfeita harmonia.

Talvez o Nexo Arcano fosse exatamente isso: o instante de alinhamento perfeito em que querer e ser se tornam indistinguíveis. O ponto de ressonância onde a Vontade não apenas responde, mas reconhece quem a invoca. Não como um servo obediente a um comando externo, mas como uma extensão natural e consciente do próprio ser.

“Será que ele está em mim... ou sou eu que estou imerso nele?”

Nesse momento, dei-me conta de que estava imóvel, com os olhos fechados, há um tempo considerável. Respiração profunda e regular, músculos relaxados apesar da concentração, o suor começando a esfriar na nuca. E a energia ali — serena, estável, contida. Diferente de antes. Ela parecia me escutar agora, responder à minha quietude interior, mesmo que eu ainda não soubesse exatamente o que ‘dizer’ a ela com clareza.

Margareth observava-me à distância, sentada sobre a pedra que lhe servia de assento improvisado, quase um trono rústico em meio à natureza. Seu olhar não continha julgamento, nem mesmo um orgulho explícito que pudesse inflar meu ego novamente. Era um olhar de espera paciente, sábia, como se aguardasse que eu mesmo percebesse e integrasse a lição, algo que ela não poderia me ensinar apenas com palavras, por mais eloquentes que fossem.

E então, como se sentisse que eu havia alcançado um ponto de saturação por aquela manhã, um limite natural de aprendizado, ela disse:

— Elian. Venha. É hora do almoço.

Abri os olhos lentamente. A luz do sol já havia mudado sua inclinação, banhando o campo de treinamento com um brilho dourado mais quente, mais maduro. Caminhei até ela em silêncio, sentindo algo diferente em meu interior, uma nova quietude, uma nova percepção. Como se, mesmo sem conseguir articular a sensação plenamente, eu estivesse um passo mais próximo daquilo que estava destinado a ser.

E, em algum lugar profundo de minha consciência, uma voz silenciosa sussurrava — não a dela, nem a minha própria voz mental habitual, mas algo que parecia emanar do próprio mundo ao meu redor, da própria energia que eu começava a tocar:

“Continue.”

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