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Chapter 24 - O "IGNICORNIUS DIABOLICUS"

Desde que terminara os estudos na Faculdade de Medicina, Alberto 

pensara fazer um curso de aperfeiçoamento nos Estados Unidos ou na 

Europa. A oportunidade chegara afinal, e ele partira para a França, indo 

trabalhar com o Doutor Jean Renaud, o mais famoso Cardiologista de Paris. 

Cada dia gostava mais da profissão que escolhera. Isso fazia com que o 

trabalho se lhe tornasse leve, fascinante, quase um prazer. 

E o moço ia de maravilha em maravilha, à medida que se aprofundava no 

conhecimento do simples e ao mesmo tempo complicado engenho do corpo 

humano. Como era tudo lógico, equilibrado, perfeito "inteligente"! A 

circulação do sangue, a defesa dos glóbulos contra a invasão dos micróbios, 

o mecanismo da digestão, as maravilhas da concepção e do globo ocular... E 

compreendia a sábia e profunda lição de solidariedade humana que existe, 

por exemplo, num órgão que trabalha duplamente, a fim de compensar as 

deficiências de algum "irmão", um outro órgão enfermo... A Medicina 

absorvia-o completamente, a verdade era essa... 

Mesmo assim, ainda lhe sobrava tempo para namorar Nathalie, uma 

francesinha de olhos claros, que fazia o curso de Filosofia na Sorbonne. 

Alberto acabou descobrindo, afinal, que não gostava da moça. Ficaram 

amigos, apenas. 

O Doutor Renaud havia convidado Alberto para um jantar em sua casa, 

oferecido ao Professor Kurt von Richter, um dos mais famosos psiquiatras 

da Europa. 

O brasileiro e o médico alemão fizeram tão boa camaradagem que 

combinaram uma ceia para o dia seguinte, em certo restaurante chinês, num 

dos bairros de Paris. 

Kurt von Richter era um homem ainda moço, bastante inteligente e culto. 

O brasileiro achou graça na familiaridade com que o seu colega germânico 

manejava os pauzinhos para comer arroz, enquanto ele, Alberto, não 

conseguia nem segurá-los direito. 

A conversa derivou para outros lados até que começaram a falar sobre 

mulheres. 

Kurt era viúvo, sem filhos, e desejava casar-se outra vez. 

— Você pretende continuar solteiro? perguntou ele a Alberto. 

— Talvez. Até hoje só encontrei uma criatura que poderia me fazer 

mudar de idéia. 

— Quem foi? 

— Uma moça de minha terra. 

— Bonita, simpática? 

— Vou lhe mostrar um retrato dela. 

Alberto tirou a carteira do bolso, abriu-a e mostrou a Kurt uma fotografia 

de Verônica, protegida por um celofane, na qual a moça estava ao lado de 

Mr. Graz. 

— É um instantâneo ligeiro que mandei ampliar, explicou o brasileiro. 

Foi o retrato mais fiel que ela jamais teve. 

Kurt examinou-o e não pôde conter uma exclamação. 

— Mas esse que está ao lado dela é Rudolf Bartels! disse ele, em voz 

alta. 

— Rudolf Bartels? Não. É Mr. Graz, suíço, professor de línguas... 

— E pensávamos que ele tinha morrido... continuou Kurt, surpreso. 

Como terá ido parar no Brasil, meu Deus! É ele, não tenho a menor dúvida... 

Alberto não se continha mais de curiosidade. 

— Conheceu esse homem? Onde? Quando? 

— Há cerca de dezesseis anos, quando eu era interno num sanatório para 

doentes mentais, em Genebra. Rudolf desapareceu de lá misteriosamente, e 

não houve meio de encontrá-lo em parte alguma. Conte-me, depressa, como 

chegou em sua terra, o que fazia lá etc. 

— Prefiro antes ouvir a sua história, ou melhor, a história dele, por seu 

intermédio. Não imagina o quanto me interessa... Por que razão foi internado 

no sanatório? 

Kurt von Richter bebeu um pouco de "sakê" e começou: 

— O caso de Rudolf Bartels sacudiu o mundo científico de toda a 

Europa. Nasceu ele em Munique, numa das famílias mais antigas do lugar. 

Desde cedo manifestara forte inclinação para a entomologia, à qual se 

dedicou inteiramente, especializando-se em coleópteros... 

Ao ouvir isso, Alberto levou um choque. Começava a enxergar um raio 

de luz, no sombrio mistério da morte de Hugo. Sem perceber a ansiedade do 

amigo, von Richter continuou: — Bartels vivia fechado em seu laboratório, 

examinando, classificando e estudando a vida dos besouros. Chegou a ser 

considerado a maior autoridade da Europa. De vez em quando fazia 

excursões, acompanhado de um assistente chamado Hans Schultz, que o 

auxiliava nas pesquisas. Numa dessas viagens, descobriu, numa floresta da 

África, um exemplar estranhíssimo, jamais visto por olhos humanos: um 

besouro inteiramente vermelho, com dois chifres... e de um gênero ainda não 

descrito. Tratava-se de uma coisa verdadeiramente sensacional no mundo 

das Ciências Naturais. Bartels recolheu o precioso exemplar, batizando-o de 

"Ignicornius diabolicus", devido a seu aspecto demoníaco. Voltando a 

Munique, fez uma comunicação aos colegas do mundo todo sobre o notável 

achado e a "Deutschen Entomologischen Institut der Kaiser Wilhelm 

Geselschaft" convidou-o a fazer a apresentação oficial do "inseto" em seus 

salões. Entomologistas de vários países foram convidados, e a data foi 

marcada. Exultante, Bartels aguardava o momento de exibir a sua descoberta 

aos olhos curiosos dos colegas. A sessão solene foi prestigiada com a 

presença das maiores autoridades européias no assunto. Bartels contou, em 

comovidas palavras, as circunstâncias em que fizera a descoberta e anunciou 

que iria abrir, naquele momento, a caixinha onde se achava espetado o 

besouro vermelho. A assistência, que lotava completamente o salão, bateu 

palmas e ergueu-se, entusiasmada. Rudolf ergueu a tampa e... soltou um 

grito agudo. O "Ignicornius diabolicus" desaparecera! A confusão foi 

enorme. Bartels desmaiara e teve de ser carregado até um sofá que havia 

noutra sala. O escândalo não podia ser maior! 

— O senhor assistiu à cena? 

— Não. Meu pai, que é biologista, viu tudo e contou-me os detalhes. 

— Que coisa terrível!... 

— O pobre Bartels, ao voltar a si, começou a dar algumas mostras de 

perturbação mental. Desinteressou-se de tudo e todos, obcecado 

exclusivamente com uma coisa: descobrir quem escondera o "Ignicornius", 

expondo-o a tamanha humilhação. 

— E quem foi? 

— Hans Schultz o havia tirado da caixinha, pouco antes da sessão 

solene. 

— Com que intenção? 

— A fim de fazer Bartels cair no ridículo. Schultz era mesquinho, 

invejoso, perverso, e não suportava a vitória de Bartels, descobrindo o 

escaravelho vermelho. 

— Como souberam que foi ele? 

— Bem, essa já é outra história na qual muito bem se saiu a Polícia 

Alemã. 

— E daí? 

— Ao saber que fora seu assistente o responsável, o estado mental de 

Rudolf agravou-se: alucinado, avançou para Schultz num momento em que 

se viu a sós com ele e estrangulou-o. Depois disso, teve uma espécie de 

desmaio do qual saiu completamente alterado. Já não era mais o mesmo 

homem. Desconheceu os amigos e começou a pronunciar frases estranhas, 

dizendo-se professor de línguas. Os psiquiatras que o examinaram chegaram 

então à conclusão de que se tratava de um caso de amnésia. 

— Acha que o choque nervoso seja responsável por esse fenômeno? 

— Perfeitamente. 

— Não seria uma reação... digamos, exagerada? Tudo por causa de um 

simples besouro... 

— Ah! meu caro! Você não sabe o que significa, para uma criatura, o 

objeto no qual depositou o seu amor!... Um cão, uma coleção de selos, um 

jardim florido, um estudo de música, um ensaio de biologia... Nas suas 

pesquisas entomológicas, Bartels realizava aquela necessidade de afeição, 

talvez mais dada que recebida, sentida por todos nós. Rudolf vivia em 

função do mundo dos insetos, por assim dizer. E o besouro vermelho tornou

se a encarnação visível, palpável, de seus sonhos. Era solteiro, vivia só, e 

toda a sua afetividade fora derivada para a profissão. Alie-se ao golpe que 

sofreu, uma certa tendência neuropática hereditária e estará explicada a 

situação. 

Alberto, ouvia, fascinado, as palavras de Kurt. 

— Como era fisicamente esse Hans Schultz que escondeu o 

"Ignicornius" e que Rudolf Bartels... matou? 

— Alto, de cabelos cor de fogo e rosto sardento... O brasileiro procurou 

dominar sua agitação. Percebendo qualquer coisa diferente na fisionomia do 

companheiro, von Richter perguntou se ele estava se sentindo mal. 

— Já passou, disse Alberto, procurando reagir. Antes de lhe contar 

minha história preciso fazer-lhe uma pergunta. Em caso de amnésia como 

esse, pode a vítima, tendo adquirido nova personalidade, guardar lembranças 

de sua vida anterior? 

— Não lembranças propriamente, mas fobias relacionadas com fatos 

desagradáveis da outra fase, por exemplo. No caso de Bartels, deu-se o 

seguinte: o hospital contratara um novo enfermeiro de cabelos vermelhos. 

Ao vê-lo, Rudolf enfureceu-se de repente e avançou para ele, tentando 

estrangulá-lo. 

— E o conseguiu? 

— Não, por causa da interferência de terceiros. Depois disso, caiu numa 

prostração profunda e ficou pensativo como se estivesse arquitetando 

qualquer coisa. Conservara, entretanto, alguns vestígios concretos da 

primeira fase de sua vida: trazia sempre consigo um pequeno saco de veludo 

cheio de besouros. Um dia, ninguém sabe como, fugiu do sanatório. O modo 

pelo qual viajou para o Brasil é outro mistério. Aí está a história toda. Agora 

conte-me a sua. 

Alberto repetiu o caso desde a morte de Hugo até o incêndio na capela de 

Padre Afonso. 

Kurt von Richter ouvia-o, perplexo. 

— O que me surpreende mais, disse ele, é a precisão e calma com que 

Bartels arquitetou, estudou e realizou todo o seu plano. Aquilo deve ter 

levado anos e anos, meu caro... O curioso é que fez isso tudo meio 

inconsciente, movido pela inexplicável psicose de que sofria. 

— Coitado de Mr. Graz! exclamou Alberto. 

Não sentiu ódio ou desprezo pelo suíço. Invadiu-o antes um dó profundo, 

a que não faltava um pouco de ternura. Pobre mente atormentada!... 

— Bartels deixou algum parente em Munique? indagou Alberto. 

— Apenas um tio e alguns primos. Creio que não direi nada a eles. Para 

quê? Continuarão pensando que Rudolf se acha desaparecido e... é só. 

Os dois médicos conversaram até a madrugada e despediram-se com 

muitos protestos de amizade. Kurt von Richter prometeu visitar o amigo no 

Brasil brevemente, e partiu. Iria tomar o avião naquele dia mesmo, às nove 

horas da manhã, de volta à Alemanha.

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