Desde que terminara os estudos na Faculdade de Medicina, Alberto
pensara fazer um curso de aperfeiçoamento nos Estados Unidos ou na
Europa. A oportunidade chegara afinal, e ele partira para a França, indo
trabalhar com o Doutor Jean Renaud, o mais famoso Cardiologista de Paris.
Cada dia gostava mais da profissão que escolhera. Isso fazia com que o
trabalho se lhe tornasse leve, fascinante, quase um prazer.
E o moço ia de maravilha em maravilha, à medida que se aprofundava no
conhecimento do simples e ao mesmo tempo complicado engenho do corpo
humano. Como era tudo lógico, equilibrado, perfeito "inteligente"! A
circulação do sangue, a defesa dos glóbulos contra a invasão dos micróbios,
o mecanismo da digestão, as maravilhas da concepção e do globo ocular... E
compreendia a sábia e profunda lição de solidariedade humana que existe,
por exemplo, num órgão que trabalha duplamente, a fim de compensar as
deficiências de algum "irmão", um outro órgão enfermo... A Medicina
absorvia-o completamente, a verdade era essa...
Mesmo assim, ainda lhe sobrava tempo para namorar Nathalie, uma
francesinha de olhos claros, que fazia o curso de Filosofia na Sorbonne.
Alberto acabou descobrindo, afinal, que não gostava da moça. Ficaram
amigos, apenas.
O Doutor Renaud havia convidado Alberto para um jantar em sua casa,
oferecido ao Professor Kurt von Richter, um dos mais famosos psiquiatras
da Europa.
O brasileiro e o médico alemão fizeram tão boa camaradagem que
combinaram uma ceia para o dia seguinte, em certo restaurante chinês, num
dos bairros de Paris.
Kurt von Richter era um homem ainda moço, bastante inteligente e culto.
O brasileiro achou graça na familiaridade com que o seu colega germânico
manejava os pauzinhos para comer arroz, enquanto ele, Alberto, não
conseguia nem segurá-los direito.
A conversa derivou para outros lados até que começaram a falar sobre
mulheres.
Kurt era viúvo, sem filhos, e desejava casar-se outra vez.
— Você pretende continuar solteiro? perguntou ele a Alberto.
— Talvez. Até hoje só encontrei uma criatura que poderia me fazer
mudar de idéia.
— Quem foi?
— Uma moça de minha terra.
— Bonita, simpática?
— Vou lhe mostrar um retrato dela.
Alberto tirou a carteira do bolso, abriu-a e mostrou a Kurt uma fotografia
de Verônica, protegida por um celofane, na qual a moça estava ao lado de
Mr. Graz.
— É um instantâneo ligeiro que mandei ampliar, explicou o brasileiro.
Foi o retrato mais fiel que ela jamais teve.
Kurt examinou-o e não pôde conter uma exclamação.
— Mas esse que está ao lado dela é Rudolf Bartels! disse ele, em voz
alta.
— Rudolf Bartels? Não. É Mr. Graz, suíço, professor de línguas...
— E pensávamos que ele tinha morrido... continuou Kurt, surpreso.
Como terá ido parar no Brasil, meu Deus! É ele, não tenho a menor dúvida...
Alberto não se continha mais de curiosidade.
— Conheceu esse homem? Onde? Quando?
— Há cerca de dezesseis anos, quando eu era interno num sanatório para
doentes mentais, em Genebra. Rudolf desapareceu de lá misteriosamente, e
não houve meio de encontrá-lo em parte alguma. Conte-me, depressa, como
chegou em sua terra, o que fazia lá etc.
— Prefiro antes ouvir a sua história, ou melhor, a história dele, por seu
intermédio. Não imagina o quanto me interessa... Por que razão foi internado
no sanatório?
Kurt von Richter bebeu um pouco de "sakê" e começou:
— O caso de Rudolf Bartels sacudiu o mundo científico de toda a
Europa. Nasceu ele em Munique, numa das famílias mais antigas do lugar.
Desde cedo manifestara forte inclinação para a entomologia, à qual se
dedicou inteiramente, especializando-se em coleópteros...
Ao ouvir isso, Alberto levou um choque. Começava a enxergar um raio
de luz, no sombrio mistério da morte de Hugo. Sem perceber a ansiedade do
amigo, von Richter continuou: — Bartels vivia fechado em seu laboratório,
examinando, classificando e estudando a vida dos besouros. Chegou a ser
considerado a maior autoridade da Europa. De vez em quando fazia
excursões, acompanhado de um assistente chamado Hans Schultz, que o
auxiliava nas pesquisas. Numa dessas viagens, descobriu, numa floresta da
África, um exemplar estranhíssimo, jamais visto por olhos humanos: um
besouro inteiramente vermelho, com dois chifres... e de um gênero ainda não
descrito. Tratava-se de uma coisa verdadeiramente sensacional no mundo
das Ciências Naturais. Bartels recolheu o precioso exemplar, batizando-o de
"Ignicornius diabolicus", devido a seu aspecto demoníaco. Voltando a
Munique, fez uma comunicação aos colegas do mundo todo sobre o notável
achado e a "Deutschen Entomologischen Institut der Kaiser Wilhelm
Geselschaft" convidou-o a fazer a apresentação oficial do "inseto" em seus
salões. Entomologistas de vários países foram convidados, e a data foi
marcada. Exultante, Bartels aguardava o momento de exibir a sua descoberta
aos olhos curiosos dos colegas. A sessão solene foi prestigiada com a
presença das maiores autoridades européias no assunto. Bartels contou, em
comovidas palavras, as circunstâncias em que fizera a descoberta e anunciou
que iria abrir, naquele momento, a caixinha onde se achava espetado o
besouro vermelho. A assistência, que lotava completamente o salão, bateu
palmas e ergueu-se, entusiasmada. Rudolf ergueu a tampa e... soltou um
grito agudo. O "Ignicornius diabolicus" desaparecera! A confusão foi
enorme. Bartels desmaiara e teve de ser carregado até um sofá que havia
noutra sala. O escândalo não podia ser maior!
— O senhor assistiu à cena?
— Não. Meu pai, que é biologista, viu tudo e contou-me os detalhes.
— Que coisa terrível!...
— O pobre Bartels, ao voltar a si, começou a dar algumas mostras de
perturbação mental. Desinteressou-se de tudo e todos, obcecado
exclusivamente com uma coisa: descobrir quem escondera o "Ignicornius",
expondo-o a tamanha humilhação.
— E quem foi?
— Hans Schultz o havia tirado da caixinha, pouco antes da sessão
solene.
— Com que intenção?
— A fim de fazer Bartels cair no ridículo. Schultz era mesquinho,
invejoso, perverso, e não suportava a vitória de Bartels, descobrindo o
escaravelho vermelho.
— Como souberam que foi ele?
— Bem, essa já é outra história na qual muito bem se saiu a Polícia
Alemã.
— E daí?
— Ao saber que fora seu assistente o responsável, o estado mental de
Rudolf agravou-se: alucinado, avançou para Schultz num momento em que
se viu a sós com ele e estrangulou-o. Depois disso, teve uma espécie de
desmaio do qual saiu completamente alterado. Já não era mais o mesmo
homem. Desconheceu os amigos e começou a pronunciar frases estranhas,
dizendo-se professor de línguas. Os psiquiatras que o examinaram chegaram
então à conclusão de que se tratava de um caso de amnésia.
— Acha que o choque nervoso seja responsável por esse fenômeno?
— Perfeitamente.
— Não seria uma reação... digamos, exagerada? Tudo por causa de um
simples besouro...
— Ah! meu caro! Você não sabe o que significa, para uma criatura, o
objeto no qual depositou o seu amor!... Um cão, uma coleção de selos, um
jardim florido, um estudo de música, um ensaio de biologia... Nas suas
pesquisas entomológicas, Bartels realizava aquela necessidade de afeição,
talvez mais dada que recebida, sentida por todos nós. Rudolf vivia em
função do mundo dos insetos, por assim dizer. E o besouro vermelho tornou
se a encarnação visível, palpável, de seus sonhos. Era solteiro, vivia só, e
toda a sua afetividade fora derivada para a profissão. Alie-se ao golpe que
sofreu, uma certa tendência neuropática hereditária e estará explicada a
situação.
Alberto, ouvia, fascinado, as palavras de Kurt.
— Como era fisicamente esse Hans Schultz que escondeu o
"Ignicornius" e que Rudolf Bartels... matou?
— Alto, de cabelos cor de fogo e rosto sardento... O brasileiro procurou
dominar sua agitação. Percebendo qualquer coisa diferente na fisionomia do
companheiro, von Richter perguntou se ele estava se sentindo mal.
— Já passou, disse Alberto, procurando reagir. Antes de lhe contar
minha história preciso fazer-lhe uma pergunta. Em caso de amnésia como
esse, pode a vítima, tendo adquirido nova personalidade, guardar lembranças
de sua vida anterior?
— Não lembranças propriamente, mas fobias relacionadas com fatos
desagradáveis da outra fase, por exemplo. No caso de Bartels, deu-se o
seguinte: o hospital contratara um novo enfermeiro de cabelos vermelhos.
Ao vê-lo, Rudolf enfureceu-se de repente e avançou para ele, tentando
estrangulá-lo.
— E o conseguiu?
— Não, por causa da interferência de terceiros. Depois disso, caiu numa
prostração profunda e ficou pensativo como se estivesse arquitetando
qualquer coisa. Conservara, entretanto, alguns vestígios concretos da
primeira fase de sua vida: trazia sempre consigo um pequeno saco de veludo
cheio de besouros. Um dia, ninguém sabe como, fugiu do sanatório. O modo
pelo qual viajou para o Brasil é outro mistério. Aí está a história toda. Agora
conte-me a sua.
Alberto repetiu o caso desde a morte de Hugo até o incêndio na capela de
Padre Afonso.
Kurt von Richter ouvia-o, perplexo.
— O que me surpreende mais, disse ele, é a precisão e calma com que
Bartels arquitetou, estudou e realizou todo o seu plano. Aquilo deve ter
levado anos e anos, meu caro... O curioso é que fez isso tudo meio
inconsciente, movido pela inexplicável psicose de que sofria.
— Coitado de Mr. Graz! exclamou Alberto.
Não sentiu ódio ou desprezo pelo suíço. Invadiu-o antes um dó profundo,
a que não faltava um pouco de ternura. Pobre mente atormentada!...
— Bartels deixou algum parente em Munique? indagou Alberto.
— Apenas um tio e alguns primos. Creio que não direi nada a eles. Para
quê? Continuarão pensando que Rudolf se acha desaparecido e... é só.
Os dois médicos conversaram até a madrugada e despediram-se com
muitos protestos de amizade. Kurt von Richter prometeu visitar o amigo no
Brasil brevemente, e partiu. Iria tomar o avião naquele dia mesmo, às nove
horas da manhã, de volta à Alemanha.