WebNovels

Chapter 6 - Capítulo 6: Protocolo Real

Ao amanhecer, Kira e Joshua já estavam de pé entre os destroços da oficina. Kira dissecava os implantes expostos de Taka com precisão cirúrgica, enquanto Joshua trabalhava na bigorna. Ele forjava algo com ferocidade; cada batida do martelo contra o bronze frio ecoava como um grito de raiva contida.

​Enquanto suas mãos trabalhavam, Kira sentia um formigamento estranho na base do crânio. Não era dor física, mas uma pressão elétrica, como se uma frequência fantasma estivesse tentando forçar uma conexão em sua mente.

Pouco depois, um ruído pesado de metal contra cascalho interrompeu o silêncio. Não era o vento. Kira, com reflexos afiados, apanhou a katana de Taka do chão, a lâmina ainda manchada de óleo e sangue seco. Joshua, engolindo em seco, carregou a escopeta a vapor de Elias, engatilhando-a com um clique trêmulo, pronto para defender o que restava de seu lar.

​Eles avançaram para o pátio. A névoa matinal se dissipou para revelar não uma simples patrulha, mas um esquadrão de elite. Quatro Cavaleiros de Aço, com armaduras fumegantes e pistões sibilando, formavam um semicírculo. No centro, uma figura imponente se destacava: armadura de latão polido, uma capa pesada de veludo chamuscado e, em suas mãos, uma montante de bronze gigantesca, zumbindo com engrenagens internas.

​— M-Majestade? — A cor sumiu do rosto de Joshua. O peso de décadas de doutrinação falou mais alto que a coragem; instintivamente, ele largou a arma e caiu de joelhos na lama diante do Rei da Fundição.

​Kira, no entanto, permaneceu ereta. Em seu mundo, reis eram apenas CEOs com títulos extravagantes. Ela não se curvaria.

​— A Fundição registrou anomalias energéticas na oficina do velho Elias. Decidimos verificar. Rotina padrão — disse o Rei, sua voz projetada com uma autoridade calma e aterrorizante. Ele então fixou seus olhos, protegidos por lentes de quartzo, em Kira. — Mas parece que minha Rainha calculou corretamente... A anomalia tem rosto. Você vem conosco.

​Kira firmou os pés, entrando em postura de combate, a katana alinhada com o peito do monarca. Foi nesse momento que o silêncio em sua cabeça quebrou. Um chiado estático, frio e sibilante, arranhou o interior de seu crânio.

​[FRAGMENTO INICIANDO...]

​A velocidade do Rei desafiava sua armadura pesada. Antes que os processadores de Kira sequer registrassem o movimento, a distância havia sumido.

​A mão do monarca, uma garra de latão e carne, envolveu o crânio de Kira inteiro, apertando-o com a pressão de uma prensa hidráulica. Não houve luta, apenas gravidade forçada. Ele a impulsionou para baixo, os joelhos dela colidindo violentamente com o cascalho.

​— Isso, anomalia — rosnou ele, a voz vibrando através do capacete dela. — Conheça seu lugar. De joelhos, diante da Coroa.

​O instinto de sobrevivência gritou mais alto que a razão. MATAR, sussurrou o Fragmento.

​Olhos piscando em vermelho-sangue, Kira canalizou a energia restante do núcleo de Taka. Seus servos ganiram com a sobrecarga e ela disparou um soco direto, visando a garganta exposta do Rei. Um golpe capaz de perfurar concreto.

​O Rei aparou o soco com a palma da mão livre.

​Houve um estrondo seco, mas o braço do monarca não recuou um milímetro. Ele segurou o punho dela com uma facilidade aterrorizante, como um pai parando o ataque birrento de uma criança.

​— Combate? — O Rei riu, um som grave e sem humor. — Não. Isso é disciplina.

​Sem soltar a cabeça dela, ele a golpeou contra o solo. Uma. Duas. Três vezes. O mundo de Kira se fragmentou em flashes de dor e estática. O chão rachou sob o impacto de seu corpo.

​— Escute bem, sua anomalia ambulante. Você vem comigo, querendo ou não. — Ele a soltou, deixando-a cair como uma boneca quebrada. — Cavaleiros! Confisquem qualquer dispositivo não registrado. E levem o garoto Straem também.

​A visão de Kira nadava em um borrão cinzento. O HUD em sua retina piscava CRÍTICO antes de apagar completamente. O Fragmento, que rugia segundos antes, silenciou-se, recuando para as sombras de sua mente diante da força bruta daquele mundo.

​A última coisa que ela viu, através da névoa da inconsciência, foram os Cavaleiros de Aço derrubando Joshua, que gritava seu nome enquanto era arrastado para longe. Então, o escuro a levou.

​A escuridão não foi absoluta. Ela veio acompanhada pelo zumbido furioso do Fragmento, reclamando da fraqueza do corpo dela.

​Quando Kira abriu os olhos, o chão tremia. O cheiro de ozônio da oficina fora substituído por óleo queimado e veludo velho. Ela estava acorrentada no interior do transporte — uma cabine de metal luxuosa, mas reforçada como um tanque.

​À sua frente, sentado em um trono improvisado de caixas de munição, o Rei limpava o sangue da mão em um lenço de seda. A espada montante dele repousava ao lado.

​Joshua estava jogado num canto, amarrado e com um hematoma feio no rosto, olhando para Kira com culpa.

​O Rei notou que ela acordou.

— Resistente — comentou ele, analisando a Katana de Taka que agora estava em seu colo. — Metal estranho. Leve, mas corta o ar com calor. De onde você roubou isso, garota?

— você é como qualquer... — ela tosse — qualquer outro corpe, um verme...

Antes que ela pudesse terminar, um golpe atingiu seu rosto com força.

— eu lhe fiz uma pergunta.

​O impacto estalou no maxilar de Kira, jogando a cabeça dela contra a parede fria do transporte. O gosto de cobre e sangue inundou sua boca instantaneamente, e o HUD em sua retina piscou em vermelho crítico, lutando para estabilizar a imagem.

​O Rei não parecia irritado, apenas decepcionado com a falta de etiqueta. Ele se inclinou para frente, invadindo o espaço pessoal dela, o cheiro de óleo, metal e autoridade emanando de sua armadura.

​— Eu não sou um "corpe", seja lá o que isso signifique na sua língua bárbara — disse ele, a voz baixa, perigosa e controlada. — Eu sou o Aço e a Ordem deste mundo. E quando a Coroa pergunta, o súdito responde.

​Ele girou a katana de Taka nas mãos, admirando o equilíbrio da arma com um olhar técnico, antes de apontar a ponta desativada — mas ainda afiada — para o peito de Joshua, que se encolheu no canto, os olhos arregalados de pânico.

​— Última chance, anomalia — o Rei pressionou a lâmina levemente contra o macacão de Joshua, rasgando o tecido. — De onde veio esta lâmina? Ou prefere que eu teste o corte na carne do jovem ferreiro?

​Joshua prendeu a respiração, tremendo, mas não gritou. Kira sentiu o Fragmento vibrar em sua mente, não com raiva dessa vez, mas com um cálculo frio: Ele vai matar o garoto. Diga o que ele quer ouvir ou eu tomo o controle e mato os dois.

A tensão no ar foi cortada pelo silvo agudo de válvulas de descompressão. A porta blindada que conectava a cabine ao resto da nave deslizou com um gemido hidráulico, liberando uma nuvem densa de vapor branco escaldante que inundou o compartimento.

​Em meio à névoa, uma silhueta feminina se formou. Elegante, precisa e aterrorizante.

​Lady Elara emergiu do vapor. Ao contrário da armadura bruta e pesada do Rei, ela vestia um traje de couro e seda vitoriano impecável, mas com modificações perturbadoras: um de seus olhos fora substituído por uma lente telescópica de rubi que girava e focava sozinha, emitindo um tique-taque suave de relojoaria. Seus dedos, envoltos em luvas finas, moviam-se com uma destreza quase artificial.

​— Quando entenderá, meu Rei? — A voz dela era suave, fria e calculista, contrastando violentamente com a brutalidade dele. — Nem sempre a força bruta é capaz de resolver equações complexas.

​Ela entrou no recinto, o salto de suas botas ecoando no metal. O Rei, apesar de sua fúria, recuou ligeiramente, abaixando a katana. O respeito — ou talvez o medo — que ele tinha por ela era palpável.

​Elara parou diante de Kira, ignorando Joshua completamente, como se ele fosse parte da mobília. A lente de rubi em seu olho girou, analisando os implantes faciais de Kira com uma fome científica voraz.

​— Deixe-a comigo — continuou ela, estendendo a mão enluvada para tocar o queixo de Kira, virando seu rosto para a luz. — Eu irei fazer essa anomalia estúpida falar...

​Ela sorriu, um sorriso fino e sem calor humano.

​— E se não falar, iremos dissecá-la. Exatamente como meus engenheiros já começaram a fazer com os restos chamuscados daquele seu... amiguinho cromado. Peça por peça. Circuito por circuito.

​Kira sentiu um gelo no estômago que superou a dor física. Eles tinham pegado o corpo de Taka das cinzas da oficina. Não o deixaram queimar em paz. Ele, que odiava ser usado pelas corporações, agora era um brinquedo de laboratório da Fundição.

​O Fragmento em sua mente parou de gritar e começou a rir baixinho.

Eles vão abrir você também, Kira. A menos que eu abra eles primeiro.

Kira não teve forças para responder. A raiva borbulhou, quente e tóxica, mas seu corpo não respondeu. Seus sistemas, drenados e danificados, começaram a entrar em desligamento de emergência.

​Lady Elara fez um gesto sutil com a mão, e um dos Cavaleiros avançou, injetando algo no pescoço de Kira. Um líquido gelado e denso que queimou suas veias. Não era medicina; era uma contenção química.

​— Durma, anomalia — sussurrou Elara, ajustando sua lente de rubi. — Você precisará estar descansada para a mesa de operação.

​Enquanto a droga puxava Kira para o abismo, o transporte fez uma curva acentuada. Pela pequena escotilha de vidro reforçado, ela teve um vislumbre final do destino deles.

​A Cidadela da Fundição rasgava o horizonte cinzento. Não era uma cidade, era uma máquina habitada. Torres de chaminés cuspiam fumaça negra que bloqueava o sol, engrenagens do tamanho de prédios giravam lentamente, moendo a própria terra, e rios de metal derretido corriam como artérias abertas pelas ruas de ferro. Era um monumento à opressão, um lugar onde a carne era fraca e o vapor era lei.

​Joshua olhou para ela uma última vez, o rosto manchado de fuligem e lágrimas, antes de ser encapuzado pelos guardas.

​O mundo de Kira escureceu. O HUD piscou uma última mensagem de erro, e a única coisa que restou foi a voz do Fragmento, rindo no silêncio de sua mente, prometendo vingança e sangue.

​Então, o zumbido cessou. O pesadelo real estava apenas começando.

More Chapters