O ônibus parou aos trancos, soltando um jato de fumaça pela lateral. A porta se abriu com um estalo seco e dele desceu um moleque de 16 anos, boné escuro, fone pendurado no pescoço e mochila jogada no ombro. Era Caio Luz. Olhos firmes, passos calmos. Parecia que nada podia tirar ele do eixo — e a real é que não podia mesmo.
Ele vinha do interior, de uma fazenda esquecida no mapa, onde o mato era alto e a lei quem fazia era ele. Ali, criou fama cedo. Aos 9 anos, dizem que destruiu um grupo inteiro de criminosos com as próprias mãos. Aos 11, já era respeitado até pelos traficantes locais. E aos 12... começou a escrever a própria lenda.
Mas disso, ninguém na cidade sabia. Pelo menos não ainda.
Caio respirou fundo e olhou em volta. Estava ali porque queria, não porque precisava. Sentia que já tinha treinado o suficiente, que o mundo urbano agora tinha algo pra oferecer — ou pra perder.
No bolso, escondido da realidade, repousava um baseado especial. Não era comum. Era o "baseado do sistema", invocável com um simples toque no bolso, invisível pra qualquer um que ele não quisesse mostrar. E o fogo? Ele mesmo criava com um estalo de dedos. Literalmente.
— Finalmente — murmurou, soltando um sorriso de canto.
Seguiu andando pelas ruas da quebrada como se já conhecesse tudo. Quem olhava, via só um moleque novo. Quem sentia, percebia o peso que ele carregava.
Logo, uma voz conhecida cortou o silêncio:
— E aí, pivete! — gritou um cara alto, magro, com cicatriz na sobrancelha e jeito marrento. — Pensei que tu tinha desistido, porra!
Caio reconheceu na hora: era o Jorge Arame. Parceiro antigo, desses que a vida une por motivo nenhum e depois separa por motivo nenhum também. Mas quando reencontra, parece que nunca se afastaram.
— E eu ia perder essa cidade fedendo a oportunidade? — respondeu Caio, batendo de leve o punho no do amigo.
Jorge riu alto, aquele riso de quem já fez muita merda e se orgulha disso.
— Te arrumei um canto pra ficar, meio escondido, do jeito que tu gosta. Mas escuta: uns caras tão falando de um maluco esquisito que apareceu por aqui esses dias. Gente nervosa... sumiço estranho... clima tenso.
Caio deu de ombros, sem mudar o olhar.
— O que tiver que acontecer, vai acontecer. Eu tô pronto.
Foram andando lado a lado pelas ruas riscadas de spray e pixação, enquanto o céu da cidade começava a queimar num laranja sujo de fumaça. O bairro ainda nem sabia, mas algo grande tinha acabado de chegar. E o nome disso era Caio Luz.
O sol já tava se despedindo, pintando os prédios com um tom dourado encardido. Caio andava devagar, como quem analisa tudo ao redor. O tênis batia na calçada ritmado, e o olhar afiado captava cada detalhe: muro pichado, barraca nova de pastel, esquina movimentada… tudo meio igual, mas tudo diferente ao mesmo tempo.
— Eita… a quebrada cresceu — comentou baixo, ajeitando o boné.
Do outro lado da rua, uma molecada jogava bola. Um deles chutou forte demais e a bola quase acertou Caio. Ele parou ela no peito, sem esforço, e lançou de volta com precisão.
— Valeu, tio! — gritou um dos moleques.
Caio só acenou com a cabeça. A molecada não fazia ideia de quem ele era, mas sentiram algo. Um certo peso no ar. Uma presença.
Virando a próxima esquina, ele viu um cara sentado numa moto, encostado no muro com cigarro na boca. Tatuagens até o pescoço e olhar de quem já viveu coisa demais.
— Ô, louco… não acredito. É tu mesmo, Caio? — disse o cara, tirando o cigarro da boca. — Pensei que tinha virado lenda, parça.
Caio sorriu de leve.
— E você continua fedendo a óleo de motor, Zé Turbo?
Zé Turbo era um dos amigos mais antigos. Mecânico de rua, piloto nas horas vagas, e doido o suficiente pra dar fuga até de bicicleta, se precisasse.
— Ah, moleque, cê não tá ligado no quanto as coisas mudaram. Tem uns caras novos aí querendo fazer nome. Acham que são os donos do pedaço porque vendem umas parada e andam armado. Só que... eles não te conhecem. Ainda.
— Bom saber. Vou dar um rolê, ver com os próprios olhos — respondeu Caio, e seguiu andando.
Mais à frente, perto de uma praça velha onde o mato já dominava os cantos, ele reconheceu outra cara familiar: Thais, a grafiteira que desde pequena fazia arte até com carvão no chão. Agora ela pintava murais gigantes, com mensagens que misturavam revolta e poesia.
— Caio?! — exclamou, com tinta nos dedos e surpresa nos olhos. — Tu voltou?
Ele se aproximou e olhou o trampo que ela tava fazendo: um rosto de mulher com olhos de fogo e fundo de fumaça.
— Isso tá ficando brabo — elogiou.
— Obrigada… mas e aí? Veio ficar ou só tá de visita?
— Vim pra ficar. Mas não espalha muito, deixa o nome voltar no silêncio.
Ela sorriu e fez um soquinho com ele.
— Tu faz falta, sabia?
Caio não respondeu, só deu um meio sorriso. A presença dele dizia mais que palavras.
Continuando o caminho, encontrou Rafael "Cabeça", o nerd do crime. Cabeludo, óculos fundo de garrafa e mais QI que juízo. Era ele que hackeava câmera de segurança por diversão e já tinha invadido até sistema de banco pra provar que conseguia.
— Finalmente! Achei que cê tinha sido abduzido, caralho! — gritou Cabeça do outro lado da calçada.
— E eu pensei que tu ia ser preso antes dos 15. Tô surpreso.
Riram juntos. Era bom estar de volta. Mas Caio sabia que aquilo era só a superfície. Ainda tinha muito pra reencontrar… e mais ainda pra descobrir.
Porque no meio de tantas caras conhecidas, havia outras que ele nunca tinha visto. Uns moleques parados na frente do bar do Didi, encarando, cochichando. Roupas caras demais pra quem vive de quebrada.
Caio cruzou o olhar com um deles, que segurava um isqueiro dourado girando nos dedos. O clima pesou por um segundo, mas ninguém falou nada. Ainda.
— Tá na hora de ver quem é quem por aqui — murmurou Caio, puxando o fone pro ouvido e seguindo seu caminho.
Ele sabia que não precisava procurar confusão. A confusão sempre dava um jeito de encontrá-lo.
Na manhã seguinte, o céu ainda tava meio nublado quando Caio saiu de casa. O colégio era o mesmo que ele estudava antes de sumir pro interior, mas agora tudo parecia menor. Ou talvez fosse ele que tivesse crescido demais.
Chegou andando, sem pressa, com a mochila jogada num ombro só e o olhar despreocupado. O portão já tava lotado, como sempre. Molecada rindo, outros dormindo encostado no muro, grupinhos separados conforme as tribos. E como sempre, os olhares vieram quando ele passou.
Alguns mais curiosos, outros com aquela malícia disfarçada de julgamento.
— Quem é esse? — murmurou uma menina de trança, cutucando a amiga.
— Não sei, mas tem cara de problema — respondeu a outra, dando risada.
Caio ignorou. Entrou. Direto pro pátio.
No mural da escola, o cartaz avisava sobre trocas de sala. Foi quando ele viu que ia cair na 3ª B. Subiu as escadas, deu uma olhada de canto pro corredor e respirou fundo antes de empurrar a porta da sala.
O professor nem olhou. Só apontou com o queixo:
— Pode sentar ali no fundo.
Caio foi. No caminho, reparou em algumas figuras interessantes. Uns caras que ele já conhecia de nome, umas meninas com olhar atento… mas foi quando sentou que algo diferente aconteceu.
— Oi — disse uma voz suave ao lado dele. Ele virou e viu uma garota de cabelo liso escuro, franja e olhos castanho-claros, intensos. — Você é novo aqui?
— Mais ou menos — respondeu ele. — Já estudei aqui antes, só que… dei uma sumida.
— Sumida tipo férias ou tipo sumiu mesmo?
Ele deu um leve sorriso.
— Tipo... fui respirar outro ar.
Ela riu de leve. A risada dela não era forçada, era natural, tranquila. Isso chamou atenção.
— Eu sou a Júlia — disse ela, estendendo a mão.
Caio apertou sem frescura.
— Caio.
— Você parece meio… quieto. É assim ou só hoje?
— Hoje. Só observando o terreno — respondeu, olhando em volta.
— Boa tática. Aqui tem uns doidos. Mas também tem gente legal — ela disse, dando uma piscadinha discreta.
Caio não respondeu, mas pela primeira vez em muito tempo, achou que talvez aquela manhã não fosse tão chata quanto parecia.
O professor começou a falar algo sobre geografia, mas Caio prestava mais atenção nas pequenas coisas: o jeito que Júlia mordia a tampa da caneta distraída, os sorrisos que ela jogava quando olhava pra ele, e o fato de que ela não tava ali só por educação. Ela realmente tava curiosa sobre ele.
E isso… era novo.
Na saída, ela o chamou:
— Ei, Caio… se quiser, posso te mostrar a escola, os lugares mais de boa pra ficar no intervalo. Tipo um tour rápido, o que acha?
Ele pensou por dois segundos. Normalmente diria não, mas algo naquela garota deixava o ar mais leve.
— Fechou.
E assim começou. Um papo leve, nada forçado. Duas pessoas se conhecendo no tempo certo. Nada de "amor à primeira vista", mas um interesse real, sincero — daqueles que, com o tempo, podem virar qualquer coisa.
Caio não tava procurando ninguém. Mas, pela primeira vez desde que voltou… alguém tinha encontrado ele.