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Chapter 5 - O Nome Que Não Mereço.

A tarde se arrastava sob um céu doente, encharcado de nuvens pesadas. Lá fora, a chuva caía sem piedade — não como bênção, mas como lamento. E no interior de uma casa pobre, feita de barro e palha, gritos cortavam o ar: o som cru de uma mulher entre a vida e a morte.

O cheiro de urina e fezes se misturava ao aroma metálico do sangue, empesteando o ambiente abafado. Os gritos de dor ecoavam entre as paredes frágeis, acompanhados pelo ranger da cama de madeira e palha — agora encharcada de suor, sangue e desespero. Tudo ali era frágil. Tudo ali era humano demais.

Deitada, uma jovem mulher de talvez vinte e dois anos — olhos azul-marinho e cabelos ruivos, outrora lisos e belos, mesmo para uma camponesa — agora se encontrava irreconhecível: cabelos desgrenhados, pele pálida, o rosto suado marcado por uma expressão que mesclava força, dor e medo.

Ao seu lado, uma mulher mais velha — cabelos grisalhos presos por um lenço sujo, rosto sulcado por rugas e cansaço. Os olhos verdes da parteira não demonstravam pânico, apenas pressa. Era o olhar de quem já tinha testemunhado inúmeros nascimentos… e algumas mortes.

— Respire fundo e empurre com mais força! A cabeça da criança está aparecendo! Não desista! — gritou a mulher de cabelos grisalhos, sua voz firme cortando o ar saturado de dor.

Ao lado da cama, um homem jovem segurava com força a mão da mulher em trabalho de parto. Tinha cabelos negros como carvão e olhos que cintilavam como ouro recém-cunhado, refletindo a luz bruxuleante do lampião com um brilho intenso e quente — um contraste gritante com o pavor estampado em seu rosto.

— Aguenta firme, Maria! Eu tô aqui... você consegue, meu amor... — sussurrava, a voz trêmula, quase quebrando sob o peso da impotência.

Maria gritou mais uma vez, o som rasgando sua garganta e preenchendo o pequeno quarto. Suor escorria por seu corpo como se cada gota fosse uma parte de sua vida escapando. Seus olhos reviravam de dor, mas ela se recusava a parar. Não podia parar.

A parteira se inclinou, os dedos calejados em movimento rápido e preciso. — Ele está vindo! Só mais um empurrão, Maria, só mais um...!

E então veio o choro. Primeiro fraco, um som engasgado como se o mundo ainda hesitasse em aceitá-lo. Depois, alto, claro, desesperado — como se já soubesse que não nascera em paz, mas em ruína.

— É um menino. — Disse a parteira.

O homem levou as mãos ao rosto, e as lágrimas escorreram antes mesmo que ele percebesse. Seu corpo tremia, tomado por um cansaço que não era apenas físico, mas também da alma. A parteira, com mãos calejadas e olhos ainda atentos, cortou o cordão com um feitiço simples — a lâmina de luz tremeluzia no ar por um instante — e, com cuidado, envolveu o bebê em um pano grosso, já manchado de sangue e suor.

Maria, deitada, mal conseguia manter os olhos abertos. Seus braços frágeis ainda se estendiam, como se temesse que algo lhe arrancasse o filho antes que pudesse tocá-lo. A parteira se aproximou e depositou o recém-nascido sobre seu peito. Ele chorava. Um choro fino, agudo, que parecia mais velho do que ele, como se carregasse lembranças de uma dor que não era deste mundo.

E então… silêncio.

Não o silêncio da morte, nem o da paz. Era um silêncio suspenso — o tipo de silêncio que precede a verdadeira tempestade. Um instante de pausa em que tudo parece se manter vivo por um fio. A respiração frágil da mãe. O tremor nas mãos do pai. O calor estranho que embaçava o ar.

Naquele momento, não houve celebração. Apenas um respiro contido. Como se o próprio mundo estivesse esperando para saber se haveria vida… ou perda.

Maria sorriu. Fraco. Cansado. Seus olhos encontraram os do filho, e ali, por um breve instante, houve paz.

Mas a paz se rompeu quase imediatamente.

A parteira franziu o cenho. O pano sob o corpo da mulher continuava a se tingir de vermelho. A colcha de palha agora era um pântano de sangue. Ela levou a mão até o ventre da mulher e sentiu a pele úmida, fria... e o sangue — escorrendo como se nada pudesse contê-lo.

Arthur percebeu. O sorriso em seu rosto se desfez no mesmo instante em que viu o olhar alarmado da parteira.

— O que aconteceu? — perguntou, com a voz carregada de urgência.

A parteira não escondeu o receio. — Ela está sangrando mais do que deveria. Eu usei magia para selar o corte do parto, mas... algo está errado. O sangue não estanca.

Arthur se ajoelhou ao lado da esposa. Segurou a mão dela com força, quase em desespero, como se isso pudesse impedir o que se aproximava. Sua expressão era a de um homem prestes a quebrar.

O suor escorria de sua testa. O medo tomava conta do corpo. O instinto de proteção colidia com a impotência.

E no fundo de sua mente — suja pelo desespero — surgiu um pensamento que ele nunca ousaria admitir em voz alta: “Se essa criança não tivesse nascido, Maria estaria bem…”

Assim que o pensamento passou, ele se amaldiçoou por tê-lo concebido. O arrependimento veio como uma faca. Seus olhos se voltaram para a esposa — que agora estava pálida, os lábios quase sem cor, mas ainda consciente. Ela o encarava com ternura, como se soubesse tudo o que ele estava sentindo.

Com a voz fraca, entrecortada pela dor e pela perda de sangue, ela sussurrou:

— Arthur... se eu morrer... cuide dele. Por favor. Não o culpe. Ame-o... como se fosse... uma parte de mim...

Arthur desmoronou por dentro. Ela sabia. Sabia de tudo. E mesmo assim, pedia para que ele amasse a criança. Como se ela tivesse lhe confiando seu coração partido. Como se aquele bebê fosse, de fato, o que restaria dela no mundo.

Ele assentiu, com lágrimas nos olhos.

E ali, nos braços de uma mulher morrendo, a criança observava. Ainda sem força nos músculos, mas com a mente obscurecida por sensações antigas. Rodrigo.

Ele não sabia o que era aquilo. Reencarnação? Castigo? Uma chance de redenção?

Mas quando ouviu a mulher — sua nova mãe — dizer que ele não era culpado, algo se partiu por dentro. Ele queria gritar, abraçá-la, dizer que ela estava errada. Que ele era culpado. Que o sangue a deixava por sua causa, mesmo que fosse um bebê. Mesmo que não tivesse feito nada ainda. Era assim que ele se sentia.

E então veio a lembrança.

A palavra "morrer" ecoou em sua mente como uma campainha distante, e de súbito ele viu — sua mãe, lá na Terra, tombando no chão com um tiro no peito, murmurando um “eu te amo” que nunca chegou a ser dito.

Ele tentou mover a cabeça. Conseguiu. Viu a parteira desesperada, murmurando encantamentos, pressionando as mãos sobre o ventre de Maria. Uma luz azulada tremia entre os dedos da velha, mas era fraca, instável. A magia hesitava.

Rodrigo queria fazer algo. Qualquer coisa. Mas não havia força. Não havia corpo. Apenas lágrimas que não saíam, culpa que queimava e um medo antigo que retornava para assombrá-lo — o medo de ver, mais uma vez, a única pessoa que lhe olhava com ternura morrer sem que ele pudesse fazer nada.

Por um instante, tudo parou.

O tempo, o som, o mundo inteiro pareceu suspenso. Rodrigo — ou aquilo que restava de sua consciência — sentiu sua mente se despedaçar. A realidade ao seu redor parecia longe, abafada, como se ele estivesse submerso.

"Por favor, tire minha vida... Dê a ela. Ela merece viver mais do que eu."

A súplica brotou de sua alma, silenciosa, mas desesperada. Ele implorava à entidade que o havia reencarnado. Implorava para que aquele presente — essa segunda chance que ele jamais sentiu merecer — fosse tirado. Que sua existência fosse encerrada. Que a mulher que o segurava — aquela que agora morria — fosse poupada.

"Eu não sou digno. Eu deveria arder no inferno por tudo o que fiz. Essa mulher não deveria morrer por minha causa. Por favor... me mate. Me leve."

Mas nada aconteceu.

Os olhos de Maria se fecharam.

O desespero rasgou o recém-nascido. Rodrigo, mesmo preso em um corpo frágil e limitado, chorava como se o mundo estivesse desabando — um choro que não era apenas de um bebê, mas de um homem em ruínas. Era o grito surdo de um condenado tentando se redimir tarde demais.

"Mais uma morte... é minha culpa. Sempre é. A maldição sou eu."

— É minha culpa! — ele queria gritar. — As desgraças são atraídas por mim. Eu imploro! Me mate, mas deixe-a viver!

Mas não havia som. Suas palavras continuavam ecoando apenas dentro de sua mente.

Do outro lado da cama, Arthur — o homem que chorava de alegria minutos atrás — agora tremia em pânico.

— Faça alguma coisa, Elise! Ela vai morrer! Olha os olhos dela, estão se apagando! — gritou, sua voz embargada de puro terror.

A parteira, com as mãos ainda pressionadas sobre o ventre sangrando, respondeu aos berros:

— Estou tentando! Eu usei toda a magia de cura que tenho — mas esse sangramento não para!

Foi então que Rodrigo sentiu. Algo estranho.

Um desconforto na região do esterno. Um calor gélido. Uma pressão que pulsava no plexo solar, como se algo ali dentro estivesse sendo arrancado ou despertado.

Ele não sabia o que era aquilo, mas sentia — ou esperava — que talvez a entidade tivesse ouvido seu clamor. Talvez sua essência estivesse sendo retirada, como sacrifício. Se isso salvasse aquela mulher… então tudo valeria a pena.

E então aconteceu.

Uma pequena luz negra irrompeu de dentro de seu peito e flutuou suavemente pelo ar, indo até Elise.

Ninguém mais viu. Só ele.

Mas Elise... sentiu. Seus olhos se arregalaram. Ela olhou para o bebê com um misto de espanto e reverência. Em seguida, olhou para suas mãos. A energia azul de cura que emanava de seus dedos agora se fundia com a luz negra — como tinta dissolvida em água, alterando completamente o fluxo do feitiço.

Ela respirou fundo. Um minuto passou. Outro. Os olhos voltaram para Maria.

Então, num sussurro quase aliviado, ela disse:

— Acabou.

A palavra pairou no ar, ambígua, cruel.

— Acabou...? — repetiu Arthur, a voz presa na garganta. — Você quer dizer que... ela morreu?

— Não. — Elise respondeu, rapidamente. — Ela vai sobreviver. Por algum milagre... conseguimos salvá-la.

Seus olhos se voltaram brevemente para o bebê.

— Ela perdeu muito sangue… vai precisar de repouso absoluto. — disse Elise, entre suspiros cansados, enquanto se deixava cair sobre uma cadeira velha que rangeu sob seu peso. — Talvez durma por algumas horas… talvez por um dia inteiro. Não saberemos até o corpo reagir.

Seu olhar, antes tenso e carregado, suavizou-se ao fitar Maria — agora adormecida, o peito subindo e descendo devagar, como se lutasse para continuar existindo. Ao lado da cama, o homem apertava levemente a mão da esposa, com os olhos vermelhos, a emoção ainda pulsando em cada gesto.

O alívio era real, mas frágil. Como um vidro fino, trincado. Qualquer vento mais forte poderia despedaçá-lo.

Arthur desabou em lágrimas, levando a mão ao rosto. A tensão explodiu em alívio, e ele se ajoelhou ao lado da esposa, agora desacordada, mas viva. Ainda pálida, mas viva.

Rodrigo, por sua vez, sentiu um cansaço profundo o engolir. A pequena luz negra — aquela fagulha de algo que ele nem sabia possuir — havia drenado o que restava de sua energia. Seu corpo pesava. Sua mente flutuava.

"Ela viveu..."

E isso bastava.

"Se minha vida foi usada para salvar a dela... então, talvez, pela primeira vez... eu tenha feito algo certo."

Com essa última esperança pairando dentro de si, Rodrigo — recém-nascido, ex-criminoso, homem em ruínas e alma em penitência — deixou-se cair na inconsciência.

Sem dor. Sem culpa. Apenas… alívio.

★★★

Um dia inteiro havia se esvaído desde o parto. A chuva cessara lá fora, mas o céu permanecia cinzento — como se o tempo se recusasse a seguir em frente até que dentro daquela casa tudo estivesse bem.

Maria e o recém-nascido ainda não haviam despertado.

Arthur não saiu do lado da esposa nem por um instante. Sentado ao lado da cama, com os olhos fundos e o corpo inclinado para frente, segurava uma das mãos de Maria com força moderada, como se temesse que soltá-la fosse perdê-la de vez. Na outra mão, repousava o bebê, envolto em um cobertor rústico, calado, dormindo como se o peso do mundo estivesse também sobre seus ombros minúsculos.

Talvez fosse culpa. Talvez remorso. Talvez as palavras ditas — ou pensadas — durante o desespero ainda ecoassem em sua mente.

Ele sequer respondeu aos chamados insistentes de Anthony e Emanuelle, os outros filhos do casal. Mesmo quando a menininha puxou a barra de sua túnica ou quando o menino chorou silenciosamente no canto da casa, Arthur não se moveu. Seus olhos estavam presos em Maria. Em Rodrigo.

Elise, por sua vez, precisou repousar. A magia usada durante o parto drenou mais do que apenas energia; drenou parte de sua própria essência. Ainda assim, permaneceu na casa da família. Deitou-se sobre um cobertor estendido próximo à parede, mas seus sentidos não dormiam por completo. De tempos em tempos, olhava discretamente na direção do bebê. Ela sabia o que havia acontecido, mesmo que não conseguisse explicar — sentiu algo passar por ela no momento da cura, algo antigo, algo sombrio e ao mesmo tempo... triste.

Quanto aos filhos mais velhos, Anthony — com seis anos — tentava ser forte. Guardava o choro, cuidava da irmã menor e fingia compreender o que acontecia ao redor. Era o primogênito, e seu nome foi escolhido em homenagem ao pai, como manda a tradição: a primeira letra da criança deveria refletir alguém de importância na vida do casal.

Já Emanuelle, com seus três anos, foi nomeada por causa de Elise. Um gesto simples, mas que demonstrava o quanto a velha parteira significava para aquela família.

Horas se passaram. A luz do fim de tarde atravessava as frestas da parede de taipa, tingindo o interior da casa com um dourado pálido. Foi nesse instante, como se conectados por algo além da carne, que mãe e filho despertaram quase ao mesmo tempo.

Arthur, exausto mas atento, percebeu o leve movimento de Maria. Seus olhos se abriram lentamente, pesados, marejados. Ele correu para o lado da cama, e antes mesmo que pudesse dizer qualquer coisa, ela sussurrou, aflita:

— Cadê meu bebê? Onde ele está?

Havia pânico em sua voz, como se algo dentro dela pressentisse uma perda.

— Está aqui. — respondeu Arthur com rapidez, apontando com a mão direita para o pequeno embrulho adormecido ao seu lado.

Com esforço, Maria estendeu os braços, frágeis e trêmulos, e puxou o bebê para o colo. No instante em que seus corpos se tocaram, os olhos de Rodrigo — ou melhor, de Elian — se abriram. Ele a encarou em silêncio.

“Ainda estou vivo?”, ele pensou. A dúvida era legítima. A dor ainda pulsava em suas memórias, como uma cicatriz na alma.

Mas ao ver o sorriso de Maria, e o choro silencioso de alívio escorrendo por seu rosto, algo inesperado aconteceu. Uma brisa de paz — leve, mas real — atravessou o coração de Rodrigo. Ele ainda se sentia indigno, ainda acreditava que não merecia aquele renascimento. Que não merecia aquela mulher. Mas ali estava ela, abraçando-o como se ele fosse o maior presente que a vida lhe dera.

Nesse momento, duas crianças surgiram no batente da porta, guiadas por Elise.

Anthony, calado, observava com olhos maduros demais para um menino de seis anos. Emanuelle, mais impulsiva, correu até o lado da cama e se debruçou sobre os cobertores.

— Mãe… ele é meu irmãozinho? — perguntou ela com um brilho de curiosidade nos olhos.

Aquela frase fez o tempo voltar. Rodrigo se lembrou, com brutal clareza, de quando usara as mesmas palavras ao ver Luciana pela primeira vez. A voz de Emanuelle, doce e pura, fez seu peito apertar — e então um pensamento o atravessou como um raio:

“Quase arranquei a mãe deles.”

A culpa surgiu, pesada. Mas o olhar de Emanuelle, cheio de amor, o desarmou. Talvez... só talvez... ser irmão de alguém de novo... não fosse uma maldição.

— Como ele se chama, mamãe? — perguntou a menina.

Maria olhou para Arthur, que assentiu com um pequeno gesto. Depois olhou para Elise, que sorriu com ternura. Por fim, seus olhos pousaram sobre o bebê, e ela disse com voz fraca, mas firme:

— O nome dele é Elian. Em homenagem à Elise… mas também… porque significa "Aquele que ilumina".

Rodrigo piscou, surpreso. Ele — que conhecia bem as trevas — agora carregava um nome que significava luz. Aquilo parecia uma ironia cruel. Ele não era digno de iluminar nada. Mas antes que a culpa voltasse a sufocá-lo, Emanuelle sorriu e disse:

— Elian… Aquele que ilumina. Eu gostei. Os olhos dele são iguais aos do papai, e os cabelos, iguais aos seus, mamãe.

Rodrigo a observou. Pela primeira vez, algo dentro dele cedeu.

O cansaço tomou conta de seu pequeno corpo. As pálpebras pesaram. Mas antes que o sono o levasse, uma única promessa se formou em sua mente — sem raiva, sem dor, apenas uma resolução silenciosa:

“Mesmo que eu não mereça este nome… serei a luz que eles enxergam em mim.”

E então dormiu, embalado não apenas pelos braços da mãe… mas pela esperança tênue de redenção.

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